Missão Ucrânia

“Quando quero voltar à Ucrânia? Hoje”

6 mar 2022 18:59

Na fronteira de Tiszabecs, na Hungria, já atravessaram 40 mil refugiados. É para lá que se dirige o camião SOS Ucrânia proveniente de Leiria

quando-quero-voltar-a-ucrania-hoje
Em Tiszabecs, na fronteira da Ucrânia com a Hungria, as ruas enchem-se de mulheres e crianças que fogem do caos e do terror
Ricardo Graça

É suposto que o princípio nos conforte por manifestar a protecção dos mais frágeis e a segurança do amor mais inalienável, aquele de que se conhece apenas um. Por estes dias, na Ucrânia, o princípio é sinónimo de sacrifício e tem um custo, o da separação. Mulheres e crianças fogem das armas, do caos e do terror, mas, ao mesmo tempo, deixam para trás tudo o que lhes é mais familiar. A terra mãe e a língua nativa, o marido que também é pai, os amigos, a casa, o trabalho, a escola, toda a rede de significados que autorizam cada pessoa, seja adulto ou criança, a encontrar-se e a rever-se no exterior, a encontrar-se e rever-se nos outros.

Com os homens de 18 a 60 anos impedidos de abandonar a Ucrânia, devido ao conflito militar com a Rússia desde a invasão concretizada por Moscovo a 24 de Fevereiro, retirar mulheres e crianças do país inclui o risco de um adeus que pode ser para sempre.

No extremo leste da Hungria, o lugar que separa Svitlana Lar e Anna Diegryarova é o mesmo que as une temporariamente. Este domingo, coincidiram em Tiszabecs depois de abandonarem a Ucrânia e esperam atingir o mesmo destino seguro, a República Checa, a 500 quilómetros. É tudo o que partilham neste fragmento de história, na verdade, só a circunstância e o plano de fuga, tudo o resto as separa. Svitlana, mãe sozinha, atravessa a fronteira a pé, as duas filhas, ainda crianças, enroscam-se na sombra do corpo da mãe enquanto as três esperam por transporte no passeio junto ao centro de acolhimento de refugiados, instalado numa escola. Anna entra na Hungria ao volante da carrinha onde viajam a mãe, a irmã e os sobrinhos, além da cadela de estimação. Não estão sozinhas, esperam por outra carrinha, mais atrás, onde seguem pessoas conhecidas e outros animais da família, dois gatos.

É um tempo histórico, de ruptura com a normalidade, as desigualdades expressam-se com a mesma intensidade, talvez até com mais intensidade. O êxodo a que a guerra obriga não é igual para todos e o caminho para lá chegar também não. Mas o efeito devastador da visão de Putin para a Europa no ano de 2022 não poupa ninguém nem concede privilégios. Anna e a irmã deixam para trás os maridos, um apartamento destruído e outra casa que não sabem ainda se escapou aos ataques russos. Vêm de Kharkiv, uma cidade martirizada pela ofensiva. Na estrada durante vários dias, foram sobrevoadas por caças russos e encontraram veículos destruídos por explosões. É uma escapatória com desfecho incerto e por tempo indeterminado, mas o sobrinho de Anna, que brinca com a cadela da família durante uma pausa após cruzarem a fronteira, sabe perfeitamente quando quer voltar à Ucrânia: “Hoje”.

Tiszabecs, na Hungria, é onde está a terminar a primeira etapa da missão de ajuda humanitária proveniente de Leiria, que no regresso vai transportar para Portugal 21 refugiados (mulheres, crianças e jovens, incluindo dois bebés). É também uma pequena vila encostada à fronteira, considerada uma das rotas menos procuradas para sair da Ucrânia. No entanto, pode ser preciso esperar horas para atravessar de carro ou a pé. Desde o início da invasão da Rússia pela Ucrânia, a fronteira de Tiszabecs recebeu aproximadamente 40 mil pessoas.

Os refugiados, muitos deles sem documentos para circular fora do país, chegam em carros, autocarros, comboios ou mesmo a pé. Alguns são conduzidos pelas famílias até ao derradeiro quilómetro. “Uma rapariga contou a um amigo meu que vinham no comboio e houve explosões perto deles. É terrível”, descreve um voluntário, Miklos Fesus, ao JORNAL DE LEIRIA.

Na entrada da Hungria, são registados e distribuídos. Os que têm documentos e carro, seguem viagem. Os que têm documentos e estão a pé, entram para um autocarro que os leva ao centro de acolhimento, onde podem permanecer, tipicamente, até dois dias. “Às vezes demora uma hora a encher um autocarro, outras vezes demora 20 minutos”, acrescenta Miklos. As autoridades, os voluntários de diferentes países, os grupos religiosos, as organizações não-governamentais e a população local criaram um conjunto de respostas que parece funcionar. Há vários pontos de contacto a oferecer aos ucranianos o que não têm e precisam de ter. Afixado num poste de iluminação, um qr code contém o link para a rede informal existente na região, que, quase sempre gratuitamente, providencia alimentação, alojamento e transporte.

Quanto aos que circulam sem documentos, são encaminhados, também de autocarro, para outra localidade, onde o objectivo é fornecer-lhes enquadramento jurídico, mesmo que temporário, para que possam inserir-se no território da União Europeia, de que a Hungria faz parte.

“Até há dois dias, tinham de tirar uma fotografia, tinham de identificar o nome da mãe e então recebiam um comprovativo de que estão registados”, explica Miklos Fesus, em serviço no centro de acolhimento. “Temos tradutores que orientam os refugiados, temos oferta de alojamento, temos oferta de emprego e também transporte para destinos na Hungria e países próximos, usualmente, a República Checa, a Áustria e a Alemanha. E algumas pessoas já têm transporte à espera deles”.

Em Tiszabecs há gente que chega e gente que parte, militares armados com espingardas e polícias a patrulhar a zona, carrinhas na berma da estrada antes da próxima viagem, carros com matrícula da Ucrânia a entrar na Hungria para um novo começo, pessoas a pé com bagagem pela mão, muitas mulheres, muitas crianças.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas, há já um milhão e meio de refugiados por causa da guerra na Ucrânia.

Ao início da tarde, Svitlana continua diante do centro de acolhimento em Tiszabecs, espera o transporte prometido, vai ao encontro dos amigos na República Checa. E Anna afasta-se de uma cidade “completamente destruída”, Kharkiv, e dos relatos de aldeias sem água nem comida nos arredores da malha urbana. Não pede tanto como o sobrinho, mas pede o que, provavelmente, também é impossível: “Quando quero voltar para a Ucrânia? Na próxima semana”.