Sociedade
Quem não se sente não é filho de boa gente. E nas redes sociais toda a gente sente
A caça às bruxas dos tempos modernos acontece no Facebook e no Twitter, onde um acidente mortal pode desencadear a discussão sobre o acordo ortográfico.
Longe vão os tempos em que a indignação só acontecia à frente das câmaras de TV e se cortavam estradas para abrir os telejornais da hora do almoço. Agora o protesto acontece na internet, sem hora marcada. As redes sociais são o palco da nova caça às bruxas, com polémicas regadas a gasolina e emoções à flor da pele.
Quando a indignação de sofá toma a dianteira, o insólito acontece. A notícia era sobre um choque frontal, com uma vítima, na estrada que liga Leiria à Marinha Grande. Mas, na caixa de comentários online, seguiu um caminho improvável: "Caro jornalista, julgo que se enganou. Disse reta quando, provavelmente, queria dizer recta", escreve um leitor. Duas horas depois, alguém pega na deixa: "Sr. João, não se esqueça que o novo acordo ortográfico já entrou em vigor, infelizmente para todos nós, portanto reta não está errado, simplesmente está escrito com o novo acordo". Parecia o ponto final, mas não, um terceiro utilizador lembra o que provavelmente a web já havia esquecido: "Vamos discutir o AO num acidente mortal de viação?". Vamos. Com ou sem mortos. Na internet, há sempre mais alguém com mais alguma coisa para dizer. Por exemplo, isto: "O novo AO é inconstitucional pois não foi ratificado por todos os PALOP".
A troca de argumentos encontra-se no site do Jornal de Leiria, mas no Facebook e no Twitter, as redes sociais mais populares em Portugal, todos os dias surgem novos pretextos para trepar paredes, chegar a mostarda ao nariz, perder as estribeiras, fazer tempestades em copo de água. Pode ser algo importante, como os Panana Papers, a eutanásia, a prisão de Luaty Beirão em Angola ou o escândalo de corrupção no Brasil. Mas muitas vezes é só a censura a manifestar-se por dá cá aquela palha – da polémica dos brinquedos da McDonald's para menino e menina ao comentário de José Rodrigues dos Santos que pode, ou não, ter sido uma piada sobre a orientação sexual do deputado Alexandre Quintanilha, há sempre um punhado de jurados disponíveis para a santa inquisição dos tempos modernos. Em regra, começa com a indignação, evolui para a indignação contra a indignação e por vezes ainda há uma terceira vaga, que critica as duas anteriores.
Na mente de um activista do Facebook
Sobre os Panama Papers, disse isto: "Se essas empresas começarem a pagar a real tributação sobre os seus lucros, é inevitável que o custo de acesso aos seus produtos vai aumentar (...) O Facebook é free e o smartphone é cada vez mais barato porque, provavelmente, existem paraísos fiscais". Acerca do julgamento de Luaty Beirão em Angola e da recusa do Parlamento português em condenar, opinou assim: "Podem é estar contra a decisão judicial angolana; mas são as leis de um Estado independente. Portugal não pode exprimir-se contra isso. E a AR hoje votou como deveria votar. Apenas os irresponsáveis do BE (e alguns socialistas) é que não o fizeram. Por aí se vê o quilate dos deputados". Polémico, brasileiro de nascença, Orlando Tavares também tinha algo para dizer sobre a corrupção no governo e aparelho de Estado no Brasil: "Os três poderes da República estão falidos e são corruptos. Logo, a democracia tem de ser temporariamente suspensa. A solução é: se o impeachment não for para frente, os militares devem invadir o Palácio do Planalto em Brasília e derrubar o governo Dilma. Lula deve ser julgado em tribunal cível como qualquer cidadão brasileiro. Depois de suspensa a democracia, os militares devem assegurar uma transição rápida para as próximas eleições".
Não admira, portanto, que o pseudónimo criado por Márcio Lopes, professor no Instituto Politécnico de Leiria, desperte paixões e ódios. "As pessoas extrapolam. Não separam a opinião da índole pessoal. Pessoas que se desamigaram via Facebook e também me viram a cara na rua. Pessoas que me ofendem em termos pessoais", conta. Formado em Economia, passa horas ao computador, a preparar aulas, entre outras tarefas, sem com luz verde na rede social. "O que me atrai sempre é encontrar o lado não mainstream, o lado não politicamente correcto do assunto. O Facebook é um espaço privilegiado para exprimirmos as nossas opiniões em rede, de forma rápida. Por exemplo, o caso Panama Papers. Eu ainda não tive oportunidade de conversar pessoalmente sobre isso com alguns amigos; mas já o fiz por Facebook", explica.
Menos corrosiva, nem por isso Alexandra Azambuja deixa de utilizar as redes sociais para manifestar opinião. E, às vezes, até para levar os outros a manifestarem-se. Foi assim quando organizou o protesto 2 de Março em Leiria, a partir de casa e de um evento convocado no Facebook, em conjunto com mais quatro activistas. Apareceram quatro mil pessoas.
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