Viver

“Sai deste labirinto, encontra uma saída”

17 out 2019 00:00

“Graças a Deus, sentimos mais liberdade. A música faz-nos sentir diferentes”, dizem os jovens reclusos do EPL-J, que participaram no projecto A Palavra Liberta. Compuseram músicas, realizaram videoclipes e cantaram. E o raio dos miúdos cantam mesmo bem!

Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Fotografia de Ricardo Graça
Jacinto Silva Duro

“Hoje, não esqueço o passado; mais de 20 horas na cela, fechado; sei que outrora fui um delinquente”, ouve-se no discurso rápido e rimado, característico do rap. Em dois videoclipes, vários jovens reclusos no Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens (EPL – J) agigantam-se num ecrã improvisado na prisão. Crescem, cantam e declamam os seus versos.

Foram três meses que passaram rápido. Demasiado rápido. Durante esse tempo, com a orientação de elementos da produtora audiovisual de Leiria Casota Collective, dois grupos de “miúdos do EPL” foram compositores, músicos, produtores de vídeo e realizadores no terceiro e último acto deste ano da 3RPM Residências Pavilhão Mozart – Ópera na Prisão, projecto da SAMP, que conta com o apoio do Projecto PARTIS da Fundação Gulbenkian e do EPL-J.

O resultado deste trabalho, baptizado A Palavra Liberta, foram Acredita e Tudo Mudou, temas musicais sobre liberdade, esperança, reabilitação e regresso a uma vida normal, que tocam o coração de quem os escuta.

Houve ainda tempo para realizar dois videoclipes que ilustram essas músicas e um pequeno documentário sobre o processo criativo. O resultado foi apresentado na antiga Tanoaria do EPL-J, na sexta-feira, dia 11 de Outubro, perante uma plateia composta por outros reclusos, famílias, alunos, convidados, guardas e elementos da administração do estabelecimento.

“Graças a Deus, temos a música”
Nos videoclipes, os jovens declamam as suas rimas: “hoje, não esqueço o passado; mais de 20 horas na cela, fechado; sei que outrora fui um delinquente”.

“Olhamos para o tempo e tudo mudou e, hoje, graças a Deus, temos a música”. A estas palavras o coro responde: “olhem o que éramos e vejam o que somos”.

A família e as mães, portos de abrigo, no oceano largo e revolto que é a existência no ambiente adverso da clausura, são refúgio nas letras dos jovens. “Desculpa mamã, desculpa papá os nossos comportamentos imaturos”, entoam. 

Valete na área  “Estamos juntos!”
No ecrã, quando os reclusos já achavam que a sessão de exibição estava a terminar, surgiu uma mensagem de um veterano da palavra e da mensagem de intervenção. 

O rapper Valete entrou na área, para concretizar uma surpresa preparada pela Casota Collective para os jovens detidos e, em especial, para os que, naquela tarde, ali comungaram da liberdade – ainda que provisória – levada pela música.

“Já ouvi o vosso trabalho. São grandes sons e grandes MC. Muitos dos irmãos cá fora não sabem a força mental precisa para aguentar aí dentro”, disse.

O músico das rimas afiadas acabou a mensagem previamente gravada com palavras de conforto para os jovens: “Um só caminho! Estamos juntos!”

Seguem-se imagens de vários reclusos que cantam para um telefone, em vários momentos do quotidiano prisional, porque, muitas vezes, o cordão umbilical para o vicejar da vida e renovação de forças para aguentar e esperar o dia da saída é a voz que se escuta do outro lado do fio.

“Lá fora, não ligávamos muito às nossas famílias. Queríamos estar com os nossos amigos, fazer coisas com eles. Mas quando viemos cá parar, quem continua connosco é a família. Onde estão os amigos?”, diz Fábio Couchinho, um dos participantes.

Entre os reclusos que assistem, alguns não resistem e juntam-se ao coro. Contagiados, todos cantam os refrões.“Sai deste labirinto, encontra uma saída”, resume em canção um dos músicos.

Acabada a exibição dos videoclipes, os 11 protagonistas brindaram a audiência composta por outros reclusos, jovens de grupos de teatro e escolas, convidados e guardas prisionais, com as duas músicas cantadas ao vivo e, claro, o ambiente tornou-se festivo.

Primeiro ouviu-se o tema Tudo Mudou e a seguir Acredita. Escutaram-se refrões em crioulo de Cabo Verde e em português para mostrar que não há diferenças nos sentimentos, qualquer que seja o idioma. “Cada um cantou a sua parte, escrita por si e depois voltávamos ao refrão.”

Não abaixes a cabeça, se as coisas estão complicadas/todos nós tropeçamos/são situações da vida/Vivo a vida sem pressa, passo-a-passo/Até chegar, seja o que for que aconteça/Basta lutares/Acredita!

“Não cantamos isto assim, só para estar bonito; é a nossa realidade”, explica Harley Delgado, outro dos compositores improvisados. Fábio segura uma folha de papel pautado onde se se pode ler, desenhado na sua bonita caligrafia, um verso: Com a prisão, aprendemos o que é a vida/Eu, fechado, sou mais um lutador/liberdade não tem preço, mas pode ter valor.

Outra folha ao lado, contém o refrão de Tudo Mudou, a canção do outro grupo, escrito por Tiago Silva: Vou mais além pelas minhas filhas/pela minha mãe/Mãe, mãe, mãe, mãe/Mãe eu te adoro e hoje eu sinto-me bem/Mãe eu te adoro. N

o final da sessão, David Ramy, coordenador do Pavilhão Mozart, referiu que assim terminava mais um ano de residência no EPL-J e agradeceu mais “uma experiência maravilhosa” e o empenho de todos e dos vários parceiros: EPL-J, Gulbenkian, Escola de Dança Clara Leão, Leirena e Casota Collective.

Do lado da produtora, Miguel Ferraz recordou que foram recebidos dentro daquelas paredes de braços e de mentes abertas. “Saímos daqui como irmãos para a vida e de alma cheia”, disse com um nó na voz.

Os participantes no projecto sublinharam que esta foi uma oportunidade única. “Queremos agradecer do fundo do coração. Sem vós, sem o EPL-J, a SAMP, a Gulbenkian, não era possível.”

“A música faz-nos acreditar”
Fábio Couchinho, 22 anos, é o recluso 177. Harley Delgado, 21 anos, – recebeu este nome porque o pai é um fã indefectível da marca norte-americana de motociclos -, é o 38. Mas a sua presença, sagacidade e personalidade não se deixam confinar nos números mecânicos, frios e simplistas que lhes foram atribuídos pelo sistema.

Os olhos iluminam-se e os rostos ganham um sorriso permanente, quando falam da sua participação n’A Palavra Liberta. O primeiro é já um repetente no Pavilhão Mozart – Ópera na Prisão.

Participou na iniciativa Ópera na Prisão – D. Giovanni e apresentou-se ao público na Gulbenkian, depois passou pela dança contemporânea De Dentro para Fora e só falhou o teatro de Estamos Todos No Mesmo Barco.

No caso do segundo foi a primeira vez que se voluntariou para um destes projectos SAMP. Nem sequer hesitaram quando viram afixados os pedidos para voluntários. Ao todo, 32 jovens, divididos em dois grupos, participaram na Oficina Audiovisual, contribuindo com letras e sons, embora apenas 11 tenham cantado nos videoclipes.

Fábio e Harley acabaram por ficar no grupo da canção Acredita. “Mesmo estando privados de muita coisa, no dia-a-dia, a música faz-nos acreditar e foi por isso que escolhemos Acredita para nome do tema.

“Amor à primeira vista”
O trabalho com a Casota Collective acontecia às terças e quartas-feiras, primeiro só de manhã, mas, à medida que as etapas iam sendo ultrapassadas, passaram a ocupar todo o dia.

No documentário, vemos como os reclusos coleccionaram sons do dia-a-dia para produzir beats e ritmos, como escreveram quadras e refrões em crioulo e português, como se aplicaram, de microfone em punho, para fazer coincidir a métrica da palavra com a da música.

O cantor Manuel João Vieira, especialista em espremer versos do tamanho do Rossio em melodias mais pequenas do que a Rua da Betesga, ficaria orgulhoso. 

Participantes n'A Palavra Liberta
Anderson Sousa l Benedito Canvula l Bernardo Silva  l Bruno Ferreira l Carlos Almeida l Danilson Tavares l Daniel Varela l Daniel Augusto l Diogo Henriques l Edson Sanha l Ellie Té l Fábio Couchinho l Leandro Frade l Harley Delgado l Igor Semedo l Inácio Gomes  l Jason Varela l Jefferson Sá l José Té l João Gomes l João Martins l Jorge Carvalho l Joaquim Santos l Maudo Balde l Maizaique Falcão l Mathieu Pinto l Nuno Lopes l Otílio Silva l Paulo António l Tiago Silva l Wilson Soares l William Lopes 

Na tela, assistimos às brincadeiras, aos desabafos e aos sorrisos. Muitos sorrisos de jovens com pouco mais de 20 anos, que, não fossem as penas de privação de liberdade por erros irreflectidos, em nada difeririam de tantos outros, ocupados a estudar no ensino superior ou na busca de um primeiro emprego.

Ali dentro, em dias sempre iguais cheios de faces imutáveis, os momentos de felicidade e alegria são como tesouros que têm de ser aproveitados ao máximo; são eles as visitas da família, as brincadeiras no recreio e, no último ano, as 3RPM Residências Pavilhão Mozart – Ópera na Prisão, dinamizadas pela SAMP, em parceria com o Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens, com a Escola de Dança Clara Leão, com o Leirena Teatro e com a Casota.

Harley recorda o momento quando a produtora audiovisual chegou, uma equipa composta por jovens da mesma faixa etária do grupo de participantes na iniciativa. “Foi amor à primeira vista. Olharam para nós sem limitações e sem receio. Às vezes, sentimos que há pessoas com um pé atrás, mas acho que depois percebem que somos jovens com talento e que podemos fazer mais. Muito mais.”

O tempo passado a compor e a participar na residência artística trouxe o sabor fugidio de uma vida normal, sem grilhões nem celas. A cantar individualmente ou no coro – neste caso, houve uma transmutação em verdadeiro coro grego, que narra os desafios, os arrependimentos e confidências de cada um às famílias e ao público -, explicam o que era a vida fora de muros, como ela é agora e o que mudou, no compasso de espera em dias sempre iguais, longe das famílias, das mulheres e dos filhos.

As palavras repetidas, mas nunca em quantidade suficiente são “liberdade”, “esperança”, “vida” e “futuro”. “Poderia haver mais iniciativas e dinâmicas semelhantes. Acredito que os reclusos sentir-seiam mais calmos e interessados”, começa Fábio e Harley adivinha o pensamento do colega e termina: “a tentação ficaria para trás porque queremos chegar mais à frente”.

No dia 23 de Novembro, o Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria, recebe os três espectáculos realizados no âmbito das residências, promovendo uma oportunidade única para assistir ao trabalho desenvolvido no âmbito do Pavilhão Mozart – Ópera na Prisão.

Haverá um futuro na música, quando deixarem para trás este tempo de pousio? “Quando vimos o público a puxar por nós, penso que podemos ambos dizer que nos abriu novos horizontes e estamos muito entusiasmados com essa possibilidade.”

Harley já tem um fã. O irmão mais novo, de 17 anos, veio escutá-lo e ficou orgulhoso. “Acho que a minha música pode ser uma inspiração para ele.”

Para já, o objectivo é manter as coisas no bom caminho, aprender novas valências profissionais, sair o mais rapidamente possível, voltar para a família e estabelecer uma vida longe de tudo o que os atirou para ali.

“Tempo é coisa que não nos falta”, respondem quando lhes agradecemos as confidências. Afastam-se, seguidos por um guarda. Seguem para a escola da prisão, onde ambos estão a concluir o secundário na área de Desporto.