Sociedade
Tribunais: quando a realidade supera a ficção
O advogado que mandou apreender a mulher, o juiz que correu atrás do arguido para o capturar na rua, o chibo de cobrição que acabou no tacho. Estes e outros casos ficaram famosos nas comarcas da região.
Conhece aquela do cão que foi a julgamento? Aconteceu em Alcobaça e só se resolveu com a entrada do protagonista na sala de audiências. O advogado de Leiria que conta a história não esquece o que viu a seguir: o animal a correr para os braços de um dos homens que o disputava, o juiz a decidir a favor do regresso ao lar de origem, os litigantes em lágrimas a trocar o conflito pela amizade.
Para trás ficavam duas providências cautelares e um cão com muita sorte: perdeu-se, viveu com uma segunda família durante cinco anos e voltou a casa porque o destino o colocou na mesma rua do primeiro dono. E porque o tribunal assim quis.
Outro momento insólito ocorrido numa comarca da região também envolveu providência cautelar, mas neste processo, o advogado, com o casamento a desmoronar-se, requeria a apreensão da própria mulher.
O escritor Charles Bukowski dizia que os tribunais são lugares onde o final é escrito primeiro e tudo o que vem antes não passa de comédia. E por vezes é mesmo assim. Ali desfila o quotidiano de todas as comunidades. Histórias há muitas, de rir e chorar. Umas podem contar-se, outras não, mas as salas de audiências são sempre um palco, o único onde a realidade supera a ficção.
José Gomes Fernandes era ainda estagiário num escritório de advocacia quando lhe chegou às mãos um litígio invulgar entre amigos: numa aldeia próxima alguém tinha emprestado um chibo para cobrição, mas o animal acabou no tacho, o que deixou o proprietário à beira de um ataque de nervos. Por muito que lhe dissessem que o bode se tinha perdido, a busca pela verdade abriu caminho até à Justiça. "O meu patrono pediu-me para representar o demandante e na petição inicial escrevi que o chibo era para cobrir a cabra da vizinha", conta José Gomes Fernandes, recordando que o caso ficou famoso em Pombal e veio a decidir-se através de acordo indemnizatório. Noutra ocasião, o advogado tentou demover um cliente, explicando-lhe que era mais provável ganhar o Totoloto. Mas enganou-se: ficou provado que as galinhas do vizinho comiam as uvas do autor da acção e o demandado foi condenado a pagar os prejuízos. Muitos anos mais tarde, no mesmo edifício, o julgamento do homicídio do antigo autarca Alfredo Vaz de Morais ficaria marcado por um par de botas. Pertenciam ao arguido, que as tinha pintado de preto, provavelmente para ocultar vestígios de sangue. E por decisão do titular do processo permaneceram à vista de todos durante a audiência, expostas na bancada mais alta da sala.
Na Marinha Grande, já se pode contar a história do juiz – hoje desembargador – que demonstrou ter condições físicas para provas de velocidade. Em pleno interrogatório de instrução, o arguido apercebeu- se que a porta do gabinete estava no trinco e sem pensar duas vezes fugiu em direcção à rua. No entanto, não contava com a presença de espírito do magistrado, que arrancou no seu encalço, sem sequer alertar as autoridades, acabando
por alcançar o indivíduo já fora do tribunal e entregá-lo à polícia, que entretanto se tinha juntado à perseguição.
O advogado Rui Rodrigues, que recupera este episódio, recorda-se também de outro processo exemplar, ocorrido há cerca de 20 anos, em que a justiça ficou por fazer por questões meramente técnicas. E que mostra como nem sempre os acontecimentos inesperados que se dão no tribunal têm que ver com a natureza incomum dos crimes ou acções, pelo contrário, com frequência estão ligados aos rituais e mecanismos próprios da aplicação da lei.
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