Opinião

A amizade

5 fev 2021 14:50

Telefone, envie mensagens, desabafe, fortaleça-se e fortaleça os laços de amizade.

Num destes dias, depois da história de adormecer e quando me preparava para o beijinho de boa noite, a minha filha interpelou-me um pouco inquieta: “Mamã eu tenho medo que o António (nome fictício) deixe de ser o meu melhor amigo.”

Porquê filha?!

“Porque ele está sempre a zangar-se comigo quando eu vou brincar com outros amigos e depois diz que não quer ser mais meu amigo. Eu depois também digo: ‘Então também já não quero ser mais tua amiga!’

Mas depois fico com medo porque ele é o meu melhor amigo desde a pré. E sabes, às vezes também sinto um bocadinho de ciúmes quando ele fica só a brincar com a Anita (nome fictício)!”

Por onde começar quando falamos deste sentimento imensamente poderoso chamado amizade. Pela simplicidade e sinceridade das nossas crianças?

Pela memória dos encontros cúmplices da nossa infância e adolescência?

Pelo ombro amigo que está incondicionalmente sempre lá? Pela confiança e intimidade partilhadas?

Pelo ciúme e o medo de perder?

Pelo sentimento de pertença?

Pelo desgosto da traição e da ruptuta?

Fiquei a pensar nos desafios que envolvem as nossas relações de amizade ao longo da vida e nos desafios que agora a minha filha já vive na primeira pessoa.

A sua entrada na escola marcou também a entrada na esfera mais privada da sua vida social e o nascer deste amor-amizade e das suas naturais conquistas e inquietações.

Ao longo da nossa humanidade, muitos têm sido os filósofos, os poetas, os escritores, os psicanalistas, os sociólogos, a falar-nos da Philya.

Francesco Alberoni, jornalista, escritor e sociólogo italiano, no seu intemporal livro A Amizade (2001) fala-nos da amizade enquanto um sentimento sereno, transparente, feito de entrega, certeza e confiança, que começa “como um salto” que surge no momento em que experimentamos um forte impulso de simpatia, interesse e afinidade e que se constrói através de uma série de encontros, onde cada um deles retoma o precedente e é diferente do anterior, e onde se descobrem novos c aminhos e se abrem novas perspectivas.

Nas suas palavras “a amizade é uma filigrana de encontros” que prefere renunciar à fusão a favor do encontro. C.S. Lewis, escritor, romancista, poeta, ensaísta e teólogo irlandês no livro Os Quatro Amores (2006) afirma: “sem o benefício da amizade para enfraquecer a solidão e outros aspectos da psique humana, a humanidade certamente estaria em ruínas. A amizade em si é o maior dos bens”.

António Coimbra de Matos, psiquiatra e psicanalista português no livro Nova Relação (2017), considera o amor-amizade o tronco da pirâmide amorosa e na base coloca o amor-cuidado, de grande dedicação e atenção incondicional, e no seu vértice o amor-paixão.

A escritora italiana Elena Ferrante no seu livro de crónicas A Invenção Ocasional (2019) conduz-nos à raiz da palavra “amizade”, que em italiano tem a mesma raiz do verbo amare dizendo-nos que “não é por acaso que uma relação de amizade tem a riqueza, a complexidade, as contradições, as incongruências do sentimento amoroso. Posso dizer, no que me diz respeito, e sem receio de exagerar, que o amor por uma amiga me pareceu sempre de uma natureza muito semelhante à do amor pelo homem mais importante da minha vida” (p.40).

Chegados à vida adulta vamos percebendo que alguns amigos ficam para trás pelo natural curso das nossas vidas, outros acompanham-nos de mão dada pela vida fora, outros transportamos ao colo incondicionalmente como família se tratasse e perante outros fica claro que, sem nos darmos conta, repetimos padrões relacionais antigos interiorizados que nos empurraram para amizades nem sempre saudáveis e até tóxicas.

Aqui vale a pena parar para pensar, sair da repetição e procurar o novo, apoiados em novas dinâmicas de relação que, no lugar da repetição, permitem construir relações de amizade saudáveis que nos acrescentam de forma segura e nos permitem aprender a relacionarmo-nos profundamente uns com os outros.

A 15 de Janeiro iniciou-se um novo confinamento geral e, assim, começámos o novo ano com mais um gigantesco desafio à nossa saúde física e psicológica e capacidade de resiliência perante uma realidade pandémica tão dolorosa.

E a verdade é que nestes momentos de grande angústia e isolamento físico, os nossos amigos podem valer-nos muito. São relações de amparo e de abraço fortes que fazem a nossa vida valer a pena.

Telefone, envie mensagens, desabafe, fortaleça-se e fortaleça os laços de amizade.

E, no mesmo dia em que finalizo esta reflexão, recebo no telefone a seguinte citação vinda do meu grande amigo Paulo Sousa: “Abraço, lugar onde entro aos cacos e saio mosaico.” Não diria melhor!