Opinião

A bafienta beatice nacional

29 jul 2023 00:00

É um infortúnio que não tenha sido possível fazer um mísero memorial evocativo dos milhares de crianças abusadas pelos funcionários da igreja

A partir da próxima semana, Portugal vai ser palco de uma convenção mundial de jovens seguidores da Igreja Católica Apostólica Romana [ICAR].

Segundo as estimativas, cerca de um milhão de pessoas participarão no certame.

Apesar de decorrer em Lisboa, outras zonas do país também sentirão os efeitos: por exemplo, em Leiria a diocese local irá organizar um evento denominado Leiria Faith n’Fun que reunirá cerca de 7 mil visitantes.

Este é o certame que começou a dar que falar há uns meses, quando se percebeu que um palco onde irá atuar o cabeça de cartaz iria custar vários milhões de euros – mais de 5 milhões, entretanto reduzidos para 3, após a atenção mediática.

Um certame que foi trazido para Lisboa pelo ramo local da ICAR e que rapidamente recolheu apoios de todo o aparelho de Estado.

Para assinalar o facto, o Banco de Portugal (entidade pública que emite moeda) resolveu colocar em circulação uma moeda comemorativa do certame, com parte dos proveitos a serem entregues à Fundação JMJ Lisboa 2023, entidade fundada e dirigida pelo Patriarcado de Lisboa e que estabelece objetivos e âmbito de ação religiosos.

A par disto, também o Parlamento português resolveu conceder, com aprovação de praticamente todos os partidos, uma amnistia de crimes a jovens entre os 16 e os 30 anos com a justificativa: “a visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento”.

É comovente que o Parlamento tenha tido um assomo de piedade e tenha resolvido amnistiar jovens, para promover a sua reinserção social.

Só é pena que não tenha sido possível em momento anterior trabalhar para essa reinserção social quando são conhecidas as condições débeis das prisões portuguesas ou dos centros educativos para jovens.

E é igualmente um infortúnio que não tenha sido possível fazer um mísero memorial evocativo dos milhares de crianças abusadas pelos funcionários da ICAR em Portugal.

É particularmente comovente que um Estado laico aplique tantos recursos num evento privado de uma organização doutrinal – estima- -se que custe cerca de 160 milhões, pelo menos metade suportado pelo Estado Português.

O mesmo Estado que não tem meios para manter abertos os serviços de saúde, considera prioritário apoiar um certame proselitista.

Que o mais alto magistrado da nação era beato já sabíamos.

Mas, pelo visto, a beatice espalhou-se por todos os organismos do Estado, numa bafienta semelhança com tempos idos.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990