Opinião

A cultura contra-natura

8 abr 2021 16:18

Fico estupefacto aos constatar que há jovens que não possuem um único livro em casa a não ser os manuais escolares

Muitas das revoluções a que a Humanidade assistiu ligam-se à capacidade de aceder à informação, de transmitir as ideias e o conhecimento. Trata-se de revoluções que mudaram também radicalmente a capacidade de ver o mundo, de o perceber, de o ler e entender.

Uma verdadeira revolução deu-se com o aparecimento na alta Idade Média do codex, conjunto de folhas em papiro e depois em pergaminho, fáceis de coser, de manusear e de arquivar. Foi desaparecendo assim o aborrecido método de ir escrevendo num papiro contínuo, que chegava aos seis ou sete metros, enrolado num cilindro, o chamado volumen, que obrigava também ao aborrecido método de desenrolar o cilindro quando era necessário ler.

Na realidade, a história da disseminação do códice como modelo de suporte de escrita está directamente associada à difusão do cristianismo e este acabou por ser o seu principal veículo de difusão escrita e de conservação da cultura clássica. Ainda assim, tanto um método como outro exigiam aturado esforço de copiar tudo à mão, num longo processo de dedicação e de saber.

Raros os manuscritos, raros também os leitores, bibliotecas de pouquíssimas obras e cada uma muito dispendiosa.

Gutenberg, na primeira metade no século XV, torna-se o primeiro ocidental a utilizar de forma sistemática a impressão por tipos móveis, acelerando a capacidade de imprimir livros, em papel, com tiragens de centenas e depois milhares de exemplares. A um preço muito reduzido.

De um momento para o outro abre-se a possibilidade de ter acesso às grandes obras do saber, sem ter que gastar uma fortuna e esperar uma eternidade. É a grande mudança que acompanha o alvor da modernidade, estimula e permite o Renascimento, assim como potencia a cisão luterana e protestante no seio da Igreja Católica. E o livro nunca mais parou.

Durante os séculos das revoluções industriais e três quartos do século XX foi através do livro e dos jornais que a cultura em geral, o saber, as descobertas do mundo, o avanço científico e tecnológico, se disseminaram. Até hoje.

O virtual está a substituir o físico. O problema – que é grave e tem de ser estudado – é quando se conjugam dois movimentos contra-natura: por um lado, quando gerações inteiras, pouco estimuladas culturalmente a lerem jornais e livros, foram incapazes de transmitir aos seus filhos o valor da leitura; por outro lado, quando os seus filhos, sem hábitos de leitura, acabam por ser atraídos sem dó nem piedade por esse grande caixote de (muito) lixo que é a Internet.

Esse movimento nunca dará bom resultado. Deve ser da idade, seguramente, mas começo a ficar estupefacto com tanta coisa que está a acontecer. E a pandemia não é uma delas.

Fico estupefacto aos constatar que há jovens que não possuem um único livro em casa a não ser os manuais escolares; jovens que nunca leram um jornal, mesmo quando estão disponíveis à sua beira nos cafés que frequentam; jovens que não conseguem escrever uma frase direita, por mais simples que seja, sem qualquer erro. Por isso urge estudar o que se está a perder. Ou o que nunca se ganhará.