Opinião

A linha do horizonte

25 nov 2016 00:00

Agora sou um homem sem fé.

Regressar ao passado é uma armadilha para o pensamento. Uma coisa é a estrada, objetiva, concreta, mensurável. Outra é a viagem que fazemos nela, subjetiva, de memórias que nos isentam da culpa, desenhadas a partir dos instrumentos de pensamento que temos hoje e que então nos eram desconhecidos. Corramos, contudo, o risco e regressemos àquela primeira aula de catequese.

Viajemos até há cinquenta e dois anos atrás e à memória de uma sala de madeiras tristes, à lâmpada solitária no teto, ao rosto circunspecto da senhora que nos iria instruir nos mistérios do divino por entre um silêncio húmido. Um pequeno livro que iríamos forrar de papel-pardo com o nosso nome tremulamente desenhado na capa postiça, guia para estudarmos a lição e melhor sabermos responder ao senhor Padre que nos iria, muito mais tarde, inquirir, para avaliar da nossa condição moral de uma Comunhão prometida lá para o fim do ano letivo.

E logo naquela primeira hora a nossa catequista apontou duas gravuras cuja importância deveríamos reter: a imagem de um inferno onde, por entre um fogo pintado a vermelho, laranja e amarelo, se viam umas figuras toscas de rostos em padecimento eterno e braços estendidos a clamar por perdão; outra a gravura de um barco gigantesco a afundar-se ao lado de um bloco de gelo, com gentes náufragas em águas sem fundo.

E a explicação: se não se portarem bem vão para o inferno; o Senhor fez naufragar o Titanic porque os homens que o construíram desafiaram o Seu poder ao dizerem que nem Deus o poderia afundar. E como trabalho de casa, fixar uma ladainha: “Deus é um Ser infinitamente bom, criador do Céu e da terra, omnipotente, omnipresente e omnisciente”. Lá me fiz um rapazito temente a Deus e receoso da ira divina.

Depois, um jovem, com dúvidas acerca de um Deus que me diziam bom mas que permitia desacertos num mundo que ia aprendendo a interpretar. Ajudou-me um franciscano com quem partilhava confidências, cumplicidades e cigarros que eu fornecia para as nossas longas conversas nos jardins do convento e a que ele, benévola e tranquilamente, chamava confissões e me redimiam de pecados que não sentia como tal.

Inevitavelmente um dia disse-me: és um agnóstico, segue o teu caminho com a bênção de Deus. Agora sou um homem sem fé.

*Psicólogo Clínico
*Texto escrito de acordo com a nova ortografia

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