Opinião

A velhice é tramada, ou não

4 dez 2020 10:08

Ora, como eu penso que esta tramação tem responsáveis, curiosamente, tem sido nos discursos do velho Jerónimo de Sousa e do jovem João Ferreira que tenho encontrado um desses culpados. E que culpado!

Oh! Quim. – O que queres,Té?

Já tenho idade para não me incomodar com essas coisas!

Assisti a este diálogo dos meus pais quando, num almoço num restaurante, o meu pai decidiu pôr o guardanapo preso no colarinho da camisa e tal incomodou a minha mãe.

Ora eu que já estou como o meu pai, ontem, dei comigo a dizer alto e em bom som: a velhice é tra-ma-da!

Confesso que esta expressão me soa muito feia e rude e não me lembro de alguma vez ter sentido a necessidade de a utilizar, mas, no domingo, as discussões dos sabichões sobre a prioridade de vacinar contra a COVID os velhos, nos lares (como se eles se contagiassem por andarem a passear-se por aí), a referência à idade do Jerónimo de Sousa como um entrave para que, nos próximos anos, possa ter um bom desempenho enquanto secretário geral do seu partido e o vaticinar do fim desse partido porque são velhos os que ainda o suportam, deixou-me, mesmo, muito zangada!

É que, de que velhos estamos a falar?

Dos que, como dizem que disse Cícero, sendo maus, como o vinho mau, azedam com a idade, ou dos que sendo bons, como o vinho bom, com a idade se apuram?

Penso eu, que se desprezarmos este questionamento, estaremos a igualar, apenas porque são septuagenários, Donald Trump a Jerónimo de Sousa e se assim for, de facto, ser velho é tramado, não por ser uma consequência do desgaste orgânico de estar vivo durante muitos anos, mas porque do lado de fora alguém anda a tramar um e um só perfil para todos os velhos!

Ora, como eu penso que esta tramação tem responsáveis, curiosamente, tem sido nos discursos do velho Jerónimo de Sousa e do jovem João Ferreira que tenho encontrado um desses culpados. E que culpado!

Para mim, ele é o despudorado capitalismo de que ambos me falam, com o qual nos deixámos parasitar e nos dispõe para retirarmos das nossas vidas tudo: o que considerarmos, materialmente, pouco lucrativo; o que nos impeça de acedermos aos prazeres consumíveis que ele nos vende, sôfrego de lucro e de acumulação de riqueza; o que precisar de tempo para ser refletido e trabalho para ser pensado.

Temo que de tão parasitados que estamos por este capitalismo selvagem, a velhice se venha a revelar ainda muito mais tramada no futuro.

Será que este parasita vai deixar que cheguem a velhos os jovens de hoje?

A este propósito lembrei-me daquela história que referia o costume de numa aldeia os filhos levarem os pais velhos, que já não podiam trabalhar, para o cimo de um monte, onde sozinhos, apenas com uma manta para se agasalharem, aguardariam a morte.

Concluía a história a dizer que esse costume tinha acabado quando um pai rasgou metade dessa manta e ao despedir-se do filho lha entregou relembrando-o que dela também ele viria a precisar quando chegasse a velho e o seu filho agisse da mesma forma.

Ora, o que eu tenho observado é que a consequência moralizadora que era o objetivo desta história no passado agora, nos nossos dias, não faz qualquer sentido!

De facto, na vida de cada um a prioridade dada ao tempo de trabalho, seja por necessidade ou por ganância, foi-nos imposta de tal forma como valor (diga-se que sempre enlaçada com o discurso da meritocracia) que mal visto, socialmente, ficará aquele que exigir um salário que lhe permita condições para que na sua família, todos, uns aos outros, se possam cuidar!

Assim sendo, acho que cheguei a uma conclusão! Se a moral tem agora como valores os valores do capitalismo e são eles que andam a reger a ação humana na convivência social, tendo um caráter normativo eu, definitivamente, quero ser uma velha amoral.

Tal como o meu pai também eu já tenho idade para mandar esta moral “às urtigas”!

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990