Opinião

Acordes de pão

11 jan 2024 21:30

Meio século desde a aurora de abril e a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação ainda não são direitos indeléveis para todos

Volta e meia um meu Amigo Maiúsculo abastece-se de uma considerável porção de farinha que antes era grão e mós ancestrais moeram sem pressa numa cadência certeira. Ele tem saberes antigos de quem foi nado e criado à beira de um ribeiro que imprime movimento a pás de madeiros tão de outros tempos que as creio talhadas a partir do casco de uma arca de Noé.

Desta arte saberá como poucos pois é filho de moleiro, e não o sendo agora que se fez maestro, sabe de cor a partitura do como fazer pão. À farinha junta uma porção de fermento, sal e água morna, em medidas certas, pois quando com as mãos amassa os elementos vitais o faz como se dirigisse uma orquestra de instrumentos sensíveis que emitem notas e tons precisos.

Se antes de cobrir com um pano alvo esta amassadura lhe traça um sinal da Cruz e a abençoa com a murmurada ladainha “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, São Mamede te levede e São João te faça pão”, isso não sei, que esses momentos de alquimia devem ser respeitados como coisa íntima de cada um. Sei, isso sim, que a lenha com que emprenha o forno é nascida da mesma terra em que cuida e faz brotar frutas e legumes generosos nas cores e nos sabores.

O tempo de levedar a massa tem o tempo certo que tiver que durar, pois ele bem sabe que encontrar o tom certo entre os elementos é diferente da soma do talento de cada um, e deve demorar tempo certo até que aquele útero escaldante atinja a temperatura exata. Com mãos sábias e fluidas de maestro aninha naquele chão escaldante as porções certas de cada futuro pão. O tempo da cozedura tem o som que há num compasso de espera, tempo exato para quando se abrir a porta da fornalha se escutem os odores épicos do pão fumegante.

O meu Amigo que é maestro faz pão com o mesmo intuito com que dirige: para alimentar todos por igual, famintos que somos da justiça para a boca e para a necessidade do apego pela música. Nada sei de uma forma justa de distribuir riqueza, tão-somente sinto que bem mal distribuída é. Cantava Sérgio Godinho, há cinquenta anos atrás: “A paz, o pão, habitação, saúde, educação; só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir; quando pertencer ao povo o que o povo produzir”.

Meio século desde a aurora de abril e a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação ainda não são direitos indeléveis para todos. Vamos ter nas próximas semanas profícuas promessas de distribuição de riqueza. Cada um a seu modo irá dizer que todas as formas justas de distribuir são iguais, sendo que a sua sempre será mais justa que as outras.

Por mim, bastava-me que um punhado de prometedores se juntasse num bem comum e cumprissem a distribuição do pão como o faz o meu Amigo que é maestro e se chama Rui Carreira.