Opinião
Adam Smith e Maquiavel vão à bola
O futebol profissional é, atualmente, o pináculo do capitalismo. Um mundo autorregulado, sem intervenção pública – nem vontade de intervir
À medida que o ritmo de picadelas nos braços aumenta, retomam-se gradualmente grandes eventos com a presença do público. Os maiores eventos que tivemos – para já – estão ligados ao futebol.
A final da Liga dos Campeões de futebol foi precursora: agendada para a Turquia, foi transferida à última hora para o Porto.
Justificação: poder receber adeptos dos clubes intervenientes (dois clubes ingleses, por sinal), que estavam impedidos de se deslocar à Turquia por razões sanitárias.
Os resultados são conhecidos: um fim-de-semana sem observar as regras sanitárias, coroadas com desacato e pancadaria. As autoridades (policiais e políticas) assistiram com razoável indiferença à situação.
Entretanto, começou o Euro 2020 (apesar de estarmos em 2021: supõe-se que corrigir o merchandising daria demasiado trabalho). Os vários jogos já disputados têm em comum a existência de público nas bancadas.
Esta é, aliás, condição imposta pela UEFA, que transferiu jogos de Bilbau para Sevilha para que pudesse haver público nas bancadas. Dir-me-ão que a UEFA está preocupada com a emoção e o entusiasmo que passa das bancadas para o relvado.
Eu desconfio que há motivos mais óbvios. Sobretudo depois do infeliz espetáculo a que assistimos no jogo entre Dinamarca e Finlândia: um jogador colapsou, esteve à beira da morte (felizmente sobreviveu e parece fora de perigo) e tiveram de ser os próprios colegas de equipa a fazer uma barreira para dar privacidade num momento de particular fragilidade.
Tudo enquanto a realização da transmissão futebolística se entretinha a dar repetições sem fim do colapso do jogador e da sua esposa em pânico na bancada.
O jogo foi retomado pouco depois de o jogador ser levado para o hospital, por imposição da UEFA. Os destroçados dinamarqueses serão certamente uns piegas sentimentais, se não recuperam em meia hora.
Estes pequenos apontamentos – apenas dois exemplos recentes – mostram que o futebol profissional é tudo menos um desporto.
Pode haver até uma bola e uns rapazes a correr atrás dela, mas na verdade é um negócio: manda o dinheiro e esse é o único critério de interesse para os decisores (dos clubes, às federações e naturalmente a UEFA/FIFA).
Que interessa se existe um ser humano caído em risco de vida, quando isto dá um tão bom espetáculo televisivo?
A emoção a ser vampirizada a troco de mais umas audiências (que rendem mais uns milhões, naturalmente).
O que interessa se não estão garantidas as condições sanitárias, se é fundamental ter presentes uns milhares de espetadores e um regime fiscal favorável?
O futebol profissional é, atualmente, o pináculo do capitalismo.
Um mundo autorregulado, sem intervenção pública – nem vontade de intervir. Tudo pelo lucro (e interessando pouco se a bola entra ou não).
Um mundo sem lei nem ordem, sem observar sequer as mais básicas disposições legais, em que apenas os mais fortes sobrevivem – independentemente dos métodos que usam.
Um mundo em que Adam Smith e Maquiavel seriam apenas treinadores de bancada.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990