Opinião
Anomalias
Mas talvez o miúdo possuísse um mundo interior tão rico e absorvente que ainda não precisara de olhar para além de si, ainda não precisara de abrir a janela e deslumbrar-se com o exterior; ainda não precisara de dar um sentido ao seu olhar.
Já reparara diversas vezes no miúdo. Pela manhã, saía do condomínio no seu passo incerto e lento, carregando a mochila da escola como se transportasse às costas todo o peso do mundo (gostaria de lhe dizer: «Nos teus livros e cadernos está o mundo em potência, uma infinidade de possibilidades; é um peso leve, porque te torna livre.»).
Seguia pelo passeio olhando em frente, sem se distrair; custava-me pressenti-lo desinteressado da realidade circundante, custava-me adivinhá-lo um miúdo sem curiosidade. Não vem nos livros nem ensinam na escola mas é sabido que, na verdade, existem seis sentidos, e não cinco; o sexto é a curiosidade, e no fundo é o mais determinante: é o sentido que dá sentido a todos os outros, porque lhes dá contexto e consequência.
Mas talvez o miúdo possuísse um mundo interior tão rico e absorvente que ainda não precisara de olhar para além de si, ainda não precisara de abrir a janela e deslumbrar-se com o exterior; ainda não precisara de dar um sentido ao seu olhar. Até que, certa manhã, ocorre uma anomalia: o miúdo faz a sua marcha habitual em direcção à escola mas, de repente, detém-se; aproxima-se de uma árvore que existe na beira do passeio e abraça-a.
Como se se cruzasse inesperadamente com um amigo e o saudasse. O mundo continua a rodar, carros que passam e pessoas que caminham, as nuvens lá no céu a espreitar. E o miúdo a abraçar a árvore. Eu a perguntar: porquê? Eu a pensar: há oito anos que vivo aqui e nunca reparei naquela árvore. Eu a sorrir. E o mundo a rodar, desinteressado. Talvez o mundo não aprecie anomalias, talvez o mundo não aprecie o que não entende. Mas e se forem as anomalias que nos fazem sentir vivos, que nos preenchem? Que nos dão sentido?
*Escritor
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