Opinião
Ao meu pai (1933-2021)
E procurou ser um homem honesto com os instrumentos que tinha, cheio de momentos de dúvida, desvios, retrocessos, arrependimentos e algumas alegrias.
O meu pai gostava de fazer amigos e de cultivar amizades francas.
Teve a sorte de se cruzar com um tempo e com lugares onde isso foi possível e à hora da sua morte, mesmo nesta conjuntura de cuidados sanitários que até nos obriga a higienizar o consolo, foi isso que foi lembrado.
Do curso do magistério que fez já a trabalhar e que por ser estudante-pai lhe deu a alcunha de papá das-pernas-altas, às lutas políticas, à profissão de professor, ao campismo pelo qual se apaixonou, à família onde muitas vezes se está para além do bem e do mal, teve sempre grandes amigos e pessoas que admirou por variadíssimas razões.
Esculpiu espadas em madeira para quem imaginava ser príncipe, fez móveis para quem ainda não tinha dinheiro para iniciar vida, pensou em como educar melhor adultos e crianças, concebeu um país melhor e mais justo, ajudou pessoas, foi ajudado, discutiu ideais com outras, e ensinou muitos a ler.
E procurou ser um homem honesto com os instrumentos que tinha, cheio de momentos de dúvida, desvios, retrocessos, arrependimentos e algumas alegrias.
Nada de muito novo para quem tem por hábito fazer balanços dos dias.
Nos seus últimos anos de vida, já capturados pelas doenças, continuou a fazer amigos, pessoas que admirava por variadíssimas razões.
O cirurgião que lhe retirou órgãos para lhe salvar a vida e que, sendo médico neste triturador cego e surdo de actos hospitalares, quis ouvi-lo com tempo, e um outro homem, extraordinário, que o pôs a fazer teatro e que o deixou imaginar que ainda era professor apesar da mente aprisionada pela demência, dignificando-lhe a velhice.
Quem sou eu sendo filha para conhecer as razões pelas quais isto tudo frutificou no que respeita aos amigos de que o meu pai se rodeou.
Talvez o que nos aproxima das pessoas que sem grande consciência disso nos apelam à franqueza e ao motor que traz alguma esperança aos dias - a empatia, à falta de melhor palavra -, que nos permite sentir no lugar do outro, onde talvez já tenhamos estado, e esse lugar fraterno onde se pode pedir e dar sem a necessidade de grande justificação.