Opinião
Coro da Primavera
Decidiu o Governo que os portugueses devem ser virtuosos e sem vícios, e portanto quer acabar com os fumadores
Maio é por excelência o mês da Primavera. O mês em que as flores estão em grande esplendor a embelezar os campos, e os dias se espraiam a anunciar o Sol de Verão que se canta desde a madrugada. Há um entusiasmo que surge de antecipar as férias, ouvem-se os rumores e tambores das diversas festividades e celebrações que percorrem vilas e cidades. A felicidade está no ar, acompanhada de pólen e flores de dente-de-leão.
Penso que será este inebriamento coletivo que explica as últimas ocorrências do País. Olhando para as últimas semanas, penso que a generalidade dos nossos mais altos dignatários percebeu que não há nada de preocupante nesta Primavera que mereça a atenção, nenhum problema que valha a pena resolver.
Já não é preocupante a questão da habitação – com a falta de disponibilidade, as rendas incomportáveis, e os juros a empurrar as prestações para aumentos substanciais. Também não há motivo para estar apreensivo com o aumento do desemprego. Nem a nossa velha TAP tem algum problema. Nada se passa nesta República à beira-mar plantada.
Os jogos florais a que Marcelo e Costa se dedicaram nas últimas semanas é disso um bom exemplo. Certamente inebriados pelo pólen que nos rodeia, há gelados comidos em horário nobre e apontamentos meteorológicos sobre a beleza do céu. Concluímos, portanto, que além de gostar de fazer notar como principal comentador da nação, o nosso presidente é também um connaisseur de gelataria, enquanto o nosso primeiro-ministro anda atento à meteorologia, mas não parece sensível ao tempo pouco favorável à agricultura.
Percebemos, também, na última semana, que por falta de assuntos relevantes e prementes a tratar, o Governo resolveu preocupar-se com os tempos livres dos portugueses. Não promovendo a leitura de livros, que são pesados, certamente com mofo, e cheios de letras pequeninas – aliás, as crianças devem ser afastadas de tais coisas e serem lançadas para os braços da modernidade, fazendo exames em modernaços computadores.
Antes, decidiu o Governo que os portugueses devem ser virtuosos e sem vícios, e portanto quer acabar com os fumadores. Para isso, parece querer tornar missão impossível comprar e usar tabaco. Se enquanto não-fumador agradeço o ar menos poluído em espaços fechados, enquanto cidadão desconfio de medidas puritanas de quem se acha moralmente superior.
Nesta Primavera, desistiu-se de fazer algo útil. Falta a maré cheia duma ideia que empurre um só pensamento. Até lá, façam-se ouvir os clamores da gente de outra condição.