Opinião
Declínio
"Vivia entalado entre o que queria ser e o que não conseguia alcançar, sempre lamentando o passado, nunca agarrando o presente."
Uma noite deu por si sozinho, sentado às escuras no chão da sua sala vazia.
Sentia os membros dormentes e a cabeça pesada, como se a insónia lhe tivesse finalmente dominado todo o corpo. Temia qualquer coisa vaga e indefinida. Grossas gotas de suor deslizavam-lhe pelas precoces rugas da testa. Pequenas golfadas de ar enchiam-lhe com dificuldade os pulmões oprimidos. Tinha medo, sem que percebesse exactamente de quê. O coração cavalgava com estrondo, estalando no peito, nas carótidas, nas têmporas.
Perscrutou a escuridão em busca de uma silhueta familiar, mas tudo dentro da sua própria casa lhe era desconhecido. Quis lembrar-se, teria alguma vez sido feliz? Sempre fora o melhor aluno, o melhor filho, o melhor marido. Todos pensavam conhecer a beleza das suas manhãs, que banhadas de sol lhe invadiam de luz a janela e a vida. Acreditavam que mal abria os olhos, se enchia de amor com o sorriso da pessoa amada. Calculavam a sua felicidade, quando ao acordar escutava ao longe o riso alegre dos miúdos.
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Agora, no auge da sua existência, não sentia beleza, amor ou felicidade. Sabia que ficara sempre uns passos aquém da excelência. Que nunca subira acima da mediocridade. Que vivia entalado entre o que queria ser e o que não conseguia alcançar, sempre lamentando o passado, nunca agarrando o presente. Um invólucro inútil, que largado ao vento deambulava aturdido, sem origem nem destino.
Sondou o silêncio procurando algum som conhecido, mas naquela casa que lhe era agora tão estranha nada se escutava, nada existia. Apenas o medo sobrava, preenchendo através das veias todos os recantos do seu corpo. Todas as células, órgãos e sistemas, todos os fluídos e membranas, tudo o medo dominava. Medo do fracasso, da perda, da desilusão.
Ergueu-se e caminhou até à varanda. O ar estava parado e o céu carregado de estrelas. Recordou a falésia da praia onde nadava. Que livre era o mar.
O ritmo cardíaco acalmou. O mundo abrandou e estancou.
O seu olhar prendeu-se no longínquo asfalto junto ao sopé do prédio. Quis contemplar o momento, mas foi a morte que o contemplou.
Teria altura suficiente?