Opinião

Degustar a lentidão

15 fev 2020 10:56

E é também urgente assumir a premissa de que a vida não é bastante para que se progrida aleatoriamente para a ausência de interioridade.

A vida é um compósito de reticências. E o mundo vai circulando num eixo circadiano sob a influência de múltiplos ritmos imateriais ou por intermédio dos contraciclos que se sobrepõem vorazmente à condição humana.

Num tabuleiro repleto de movimentações díspares, onde ocorrem ressaltos emocionais e súbditas incoerências de tempo, onde sentimos deslocamentos do espaço em que todos nos movemos freneticamente, o homem parece colocar-se numa ordem imperceptível, aleatória, ilógica e sem rumo firme.

Sem qualquer questionamento, vai sobrevivendo desligado do auto-conhecimento, num vazio em relação à sua livre tarefa de existência numa postura submissa e muitas vezes acrítica ou acomodada.

Na semana em que lamentamos a perda de um enorme vulto da arte nobre de reflectir sobre o mundo e sobre a vida humana a partir da literatura e das humanidades - George Steiner, intelectual de relevo universal e autor de uma vasta obra da qual destaco um livro magnífico intitulado A Poesia do Pensamento, defensor de um regresso à persistência e à perduração no lugar interior que a cada um pertence -, é mais do que justa a homenagem a este pensador.

E é também urgente assumir a premissa de que a vida não é bastante para que se progrida aleatoriamente para a ausência de interioridade.

Há que lhe conferir uma forma consciente (e também consistente), uma maior relevância e motivo na concepção essencial de que há uma matéria indizível que qualquer ser humano transporta, independentemente da sua cultura, origem, idade ou religião.

Steiner tem a este propósito uma afirmação paradigmática e que resume a necessidade do encontro com a individualidade, dizendo-nos magistralmente que “o som delineia o silêncio”.

Há fragmentos da nossa existência que somente se revelam nessa quietude e estado de recolhimento ou fuga ao ruído que nos acomete insistentemente.

Certamente num fôlego lento e demorado, como se lidássemos com um tempo alojado talvez na evocação da infância em que a noção de tempo é um vago fiapo inconsistente, seja viável a reconquista.

É bem provável que essa experiência muito exclusiva e pessoal, alicerçada nas vivências e interesses individuais, contemple nos livros, na música, nos lugares, na arte, mas também no contacto com a natureza ou nas relações de afecto e cumplicidade com os outros, algo que se manifeste como uma transformação.

É como se impuséssemos aos ponteiros do relógio uma direcção oposta, remetendo-nos deliberadamente para uma espécie de evasão ao bulício dos espaços e ao ruído desvairado das horas.

A aceleração da tecnologia, a matematização dos processos quotidianos, afectaram tanto o alcance como a veracidade da linguagem natural do ser humano, o mesmo sucedendo em relação à durabilidade das relações e à manifestação desse diálogo interior, o que traduz a transparência da individualidade.

Julgo que é também a isso que se reporta Zygmunt Bauman quando afirma que “as relações escorrem pelos nós dos dedos”, dando ênfase à necessidade de se manterem as fundações da nossa capacidade intrínseca de progredir enquanto espécie gregária.

É talvez a ironia da lentidão, um meticuloso ressoar do movimento das horas na alma engrenada nos círculos e nas teias em que o corpo se emaranha insistentemente e de onde devemos ousar evadir-nos, sempre.