Opinião

Dicionário improvisado (IX)

22 set 2022 21:45

É estranho pensar que o sol possa ser envergonhado

Alegria
A mãe fala ao telemóvel e o menino olha o mar. Três nuvens passam devagar. O mar vem e vai, monotonamente previsível.

Há risos e gritos felizes. Um cão ladra. Outro cão ladra. Mais risos.

O mar vem e vai, enquanto o menino o continua a olhar. Passa um avião com uma faixa que diz: haja alegria.

Mas o menino não sabe ler. O avião desaparece. A mãe ri.

O menino levanta-se, dá uma corrida, atira-se ao chão com uma cambalhota, fica deitado na areia quente. Ri sozinho. Ouve o murmúrio do mar que vem e vai.

Sente o coração bater com força. Levanta-se com um salto, dá uma nova corrida, atira-se de novo ao chão com uma cambalhota.

Respira depressa. Sente a areia quente no corpo. Fecha os olhos.

O avião regressa. Haja alegria. O avião desaparece.

A primeira coisa que vê quando volta a abrir os olhos: três nuvens que passam devagar.

Pergunta-se se serão as mesmas de há pouco; pergunta-se se as nuvens gostariam de parar e conversar.

O menino diz baixinho: olá, nuvens. Mas as nuvens não respondem.

Então, o menino fala numa voz estranha, na voz que imagina ser a voz das nuvens: olá, criança.

O menino ri, e na sua imaginação as nuvens também riem. Haja alegria.

Amnésia
De manhã, o sol aparece e fica à janela durante algum tempo, à espreita; olha-me, como se esperasse algo de mim; ou como se tentasse reunir coragem para fazer qualquer coisa; uma pergunta, talvez.

Sim, poderá ser isso: como se tivesse uma pergunta, mas não fosse capaz de a fazer; por vergonha ou embaraço. É estranho pensar que o sol possa ser envergonhado.

O sol, que tudo vê; e que por tudo ver, talvez nada recorde. Talvez a memória do sol seja fraca, talvez a memória do sol esteja cheia, talvez o sol nem tenha memória.

Talvez em cada manhã o sol esteja apenas a tentar perceber se já me viu antes.

Beijo
Os lábios têm a capacidade de parar o tempo.

E o tempo pára sempre que assiste a um beijo porque tem inveja. O tempo nunca beijou.

Normalidade
A normalidade é uma protecção, uma defesa, uma armadura.

Ninguém dá atenção às pessoas normais, porque todos se deslumbram com as pessoas que parecem especiais.

Mas as pessoas que parecem normais preferem ser especiais apenas por dentro.

Permanência
Um dia, a montanha chega junto ao mar.

Se tivesse olhos, teria contemplado com vagar todo aquele azul.

Se tivesse nariz ou ouvidos, teria respirado ou escutado aquela serenidade imensa.

Se tivesse voz, teria dito: demorei uma eternidade a chegar, mas sempre quis conhecer-te.

Mas como não tem olhos nem nariz nem ouvidos nem boca, a montanha limita-se a permanecer.

No dia em que a montanha finalmente chega junto ao mar, nada acontece.

Prazer
Qual a relação entre prazer e tempo?
Será que o prazer suspende a passagem do tempo?

Ou o tempo vence sempre, pois é da natureza do prazer ter um fim?

Acaba o prazer, e apenas o tempo permanece.

À espera do prazer.