Opinião
Dicionário improvisado (XVII)
Passo muitas horas a olhar a montanha que vejo da janela do meu quarto; contudo, nunca fiz um único gesto para efectivamente a subir
Correlação
Uma angústia e uma felicidade entram num bar e pedem bebidas. Diz o barman: estou farto de vos ver sempre juntas, dêem espaço uma à outra.
Ditadura
Aproveita. Tens de aproveitar. Aproveita sempre. Não te limites a estar, não te limites a ser. Aproveita.
Estatística
Sabia da existência de uma repartição pública onde se tirava o ticket, aguardava-se um bocado e dizia-se o número de contribuinte; o funcionário colocava esse número no computador, fazia uma pesquisa rápida com os filtros adequados, imprimia um relatório e entregava-o ao utente; era um serviço gratuito e desburocratizado, mas que não podia ser solicitado por email. Sabia da existência deste serviço, mas ainda não tivera coragem de ir tirar o ticket. Receava a resposta à pergunta que constava no relatório: “Até à presente data, que percentagem de acontecimentos ocorridos na minha vida tiveram relevância para o mundo?” O serviço cumpria todas as directivas europeias aplicáveis e era periodicamente auditado por empresas de consultoria com nomes estrangeiros.
Infância
Pegar numa caneta e desenhar no pulso um relógio: um círculo mais ou menos perfeito e duas linhas a simbolizarem os ponteiros. Que horas são? Quatro e meia. Hora de lanche. Olhar para o relógio desenhado sempre que apetecer e encontrar a mesma hora. Quatro e meia. Hora de lanche. Literatura
Mecanismo desenvolvido pela espécie humana para lidar com as complexidades e incompreensões da existência (numa perspectiva genérica e abrangente) recorrendo a estratégias de efabulação, especulação, projecção e substituição. Se bem usado, este mecanismo pode permitir um melhor entendimento do eu, do outro e da relação do eu com o outro. É um recurso economicamente mais vantajoso do que a procura regular de técnicos de psicologia ou psiquiatria.
Queda
Da janela do meu quarto vejo uma montanha. Olho-a muitas vezes, especialmente quando estou mais melancólico. Tal como outras pessoas gostam de contemplar o mar; ou a lua; ou as folhas das árvores caídas no chão. Nesses momentos, sinto que gostaria de percorrer aquele trilho perfeitamente delineado que observo tantas vezes, e chegar lá ao cimo; e daí, olhar para o ponto de partida: procurar na paisagem da cidade a janela do meu quarto. Não sei por que motivos se sobem montanhas; talvez apenas porque a sua simples existência seja um convite: estão ali; portanto, subimo-las. Ou então para que depois as possamos descer. Talvez seja apenas isso: subir, para depois descer; ir, para depois regressar. Passo muitas horas a olhar a montanha que vejo da janela do meu quarto; contudo, nunca fiz um único gesto para efectivamente a subir. Da janela do meu quarto vejo uma montanha e penso: uma descida é sempre uma queda.
Utopia
Sim, também tu podes viver com todo o teu potencial.