Opinião

Dicionário improvisado XXIII

25 jan 2024 16:29

Vamos inventando memórias; acumulando-as uma após outra. E com elas, construímos um castelo

Apocalipse 
E se, um dia, as ondas decidirem fazer greve e recusarem visitar as praias? 

Berlinde 
Diz-me uma palavra que te faz sorrir sempre que a ouves. «Berlinde.» 

Castelo 
Dicionário improvisado XXIII. Um robusto e impressionante castelo, um impenetrável castelo, no interior do qual nos refugiamos.

Desfrutar 
Dois leões estão deitados debaixo de uma enorme árvore e olham preguiçosamente o horizonte. Observam uma zebra que se aproxima sem pressa nem aparente objectivo, distraída; olham-se interrogativamente, delineando em silêncio o plano de caça. Depois, aguardam. O tempo passa. Um leão diz: «Deixa-a aproveitar o momento. Desfrutar.» E riem, baixinho. 

Fortaleza

Vamos guardando ausências; acumulando-os uma após outra. E com elas, construímos uma fortaleza. Uma robusta e impressionante fortaleza, uma impenetrável fortaleza, no interior da qual nos refugiamos.

Interruptor 
Era uma pessoa que ria bastante. E quem ouvia o seu riso aproximava-se sempre, não resistindo àquela atracção sedutora; e permanecia por perto. Era um riso que transportava felicidade, que contagiava. E esta pessoa gostava muito de contagiar quem a rodeava com a sua felicidade. Ria muito, contagiava muito. Mas percebera, e aceitara, que quando o riso desaparecia, os outros – os que se deixavam contagiar – também desapareciam; ninguém ficava para escutar o silêncio. Por vezes, não resistia a forçar um riso; apenas um pouco, apenas o suficiente. E os outros ficavam; porque os outros não distinguiam os diferentes risos, apenas notavam a sua presença ou a sua ausência. Ligado, desligado. A pessoa sentia-se um interruptor, e quando pensava nisso ria.

Optimismo 
«Vai correr tudo bem.» Era o que diziam algumas pessoas no dia 31 de Agosto de 1939. 

Paciência 
A árvore espera que o vento venha, e seja forte; apenas assim consegue tocar brevemente a árvore que está ao seu lado. 

Pergunta 
Acorda subitamente, assustado e com a respiração descontrolada. Olha a escuridão do quarto e escuta o silêncio. Fecha os olhos, depois volta a abri-los; fecha, abre: e não há diferença. Concentra-se no silêncio e na escuridão. Não sabe como apagar a imagem que acabou de sonhar, a ideia que acabou de sonhar, a pergunta que acabou de sonhar. «Quando foi a última vez em que te sentiste livre? Ainda te lembras?» Foi o que lhe perguntou o sonho: «Quando foi a última vez em que te sentiste livre? Ainda te lembras?» 

Sufoco 
Estás tão obcecado em aproveitar o momento que corres o risco de que o momento te sufoque.

Ternura 
Tenho uns vizinhos que são donos de três carros. São uns bonitos carros, e estão sempre bem lavadinhos porque o sábado costuma ser dia de banho; e todas as semanas há um sábado. Não são banhos a despachar, não senhor; são banhos lentos e cuidadosos, quase diria ternurentos. Gosto de ver. E passo horas a imaginar que presentes darão os vizinhos aos seus carros, no natal.