Opinião
Direito a fazer parte
Sem querer ser pessimista, todos sabemos que não é fácil andar por cá. Há claramente momentos simples e tranquilos, talvez na sua maioria.
A passagem do tempo torna-se mais concreta a cada ano civil que começa e o que demora a preparar ganha maior expressão e impacto. Os dias que passam a partir daí ganham outra urgência e outra pressa. “Há que mudar alguma coisa quando muda o calendário “. Foi assim que entendi o desabafo da Maria (nome fictício) na semana passada.
Depois da nossa sessão de trabalho, a Maria levantou-se, encostou-se à parede e disse desanimada de mãos atrás das costas: “Estou a ficar deprimida aqui em casa. Não tenho nada para fazer, nem um livro posso ler porque não o entendo, por isso procuro amizades nas redes sociais. Queria ter alguém com quem sair e conversar”.
Pensei: tanto discernimento para quem não tem a sofisticação de pensamento convencional noutras questões complexas. O que fazer? Como encontrar alternativas que concedam propósito ao seu dia a dia? A escolaridade obrigatória já lá vai e a transição para a vida adulta é tudo menos linear.
A Maria tem 20 anos, acompanho-a desde os 5. Tem uma ligeira perturbação do desenvolvimento intelectual ou atrevo-me antes a dizer que tem apenas pouco jeito para os números e para semânticas que exijam muita inferência. Andamos a estudar o código da estrada, numa tentativa de o tornar mais simples, para que um dia consiga responder em 30 minutos às 30 perguntas que lhe abrirão portas a um projeto de vida mais independente (…)
Sem querer ser pessimista, todos sabemos que não é fácil andar por cá. Há claramente momentos simples e tranquilos, talvez na sua maioria.
No entanto, a qualquer altura o percurso pode complicar-se e exigir maior capacidade de resolução de problemas e de adaptação. Faz parte. Há altos e baixos. O importante é conseguir encontrar a linha média, o ponto de equilíbrio. Julgo que seja assim para a maior parte de nós. No entanto, alguns dos jovens com quem trabalho não têm exatamente esta capacidade de tomar nas mãos as rédeas da sua própria vida, ainda que gozem desse direito.
O seu património cognitivo, por alguma razão, não lhes permitiu seguir o caminho expectável, este dos altos e baixos de que falava ainda agora. Desde que se lembram que é difícil, que não entendem, que é complicado, que é injusto de alguma forma. Há mais baixos que altos. Falo dos jovens adultos cuja cognição não acompanhou na íntegra o seu crescimento físico (deficiência intelectual).
Apesar da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, da Estratégia sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Comissão Europeia, da Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, entre outras tantas iniciativas do género, que tentam garantir o respeito pela integridade, dignidade e liberdade individual, ainda existem questões a combater, sejam elas de sensibilização da sociedade, de estereótipos ou de valorização das pessoas com algum tipo de limitação.
Poucos somos os que levamos a responsabilidade social a sério. A sério no sentido de nos envolvermos e sermos agentes de mudança. A tendência é sentir pena ou prestar algum tipo de ajuda efémera, mas logo-logo tudo passa no nosso íntimo. A vida segue. Pôr as mãos na massa e fazer acontecer é outra coisa. Promover a participação destes jovens na sociedade, nomeadamente no mercado de trabalho, isso sim é um compromisso social, é implicar-se e envolver-se nas dificuldades e desvantagens alheias. É criar oportunidades, inclusão e melhoria da sua qualidade de vida. É transformar os baixos em altos e baixos. É dar sentido.
O relatório do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH) relativo aos Indicadores de Direitos Humanos de 2023, traz alguns dados animadores a respeito da empregabilidade, ainda que não aponte em concreto o tipo de deficiência a que se refere.
Parece que a taxa de atividade da população com deficiência em Portugal tem vindo a crescer, tanto em empresas do setor privado como nas administrações públicas. Também no que ao “disability employment gap” (diferenças na taxa de emprego entre pessoas com e sem deficiência) diz respeito, Portugal registava, em 2022, o 3º valor mais baixo em comparação com os países da União Europeia, verificando-se ainda, nos últimos anos, uma evolução global positiva no número de colocações de pessoas com deficiência inscritas como desempregadas no IEFP.
Há de facto intenção de garantir trabalho digno para estas pessoas, assistindo-se sobretudo a um aumento no número de leis implementadas para criar oportunidades e diminuir a discriminação, como é disso exemplo a lei das quotas de empregoi para pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade igual ou superior a 60 %. Contudo, os números são modestos e as burocracias arrastadas no tempo (um jovem que acompanho espera há dois anos por uma Junta Médica para obter o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso que o tornará elegível). Enquanto isso espera-se em casa e alimenta-se a ideia de que não se é capaz de ter uma vida igual à dos outros.
(…voltando à Maria) O seu percurso de vida, sobretudo o académico, trouxe-lhe insegurança. Infelizmente, ainda se aponta o dedo a quem é diferente (capacitismo) e a Maria foi muitas vezes posta de parte pelos pares, que na adolescência se serviam da sua ingenuidade para benefício próprio. As ironias e as segundas intenções mascaravam-se e as pistas sociais eram difíceis de compreender para a Maria. Era preciso explicar as entrelinhas das relações e antecipar futuros cenários para se sentir mais apta na gestão das amizades.
A Maria aprendeu a viver sem amigos verdadeiros, a duvidar de quem dela se aproxima ou, pelo contrário, a estar sempre disponível para poder ser aceite no grupo. A sua falta de confiança fá-la procurar aprovação frequentemente e, por vezes, as pessoas à sua volta não têm paciência para as dúvidas e pedidos de esclarecimento constantes, mas ela só queria ser igual aos outros.
Que seja mais fácil para quem tudo é mais difícil!
Que se caminhe para uma sociedade mais justa, mais solidária que respeite a diversidade. Que o compromisso seja coletivo e que não sejam as incapacidades as enfatizadas. O mindset tem de mudar. A visão da deficiência (intelectual) ainda demasiado assistencialista e baseada num “paradigma de cuidado” tem de dar lugar à promoção e apoio ao direito à autodeterminação.
Se é proprietário de uma empresa e quer melhorar a situação social e económica destas pessoas, saiba que existem apoios e incentivos para quem o faz. Existem toolkits que ensinam as empresas a recrutar e a integrar pessoas com deficiência e há ainda a atribuição da Marca Entidade Empregadora Inclusiva (MEEI) às empresas/instituições que se distingam por práticas de gestão abertas e inclusivas (em 2023 foram distinguidas 54 entidades e 7 mereceram a distinção de Excelência, entre eles dois municípios).
Que à semelhança da Zara Home for&from e do Café Joyeux, projetos solidários e inclusivos no nosso país, se repliquem outros tantos. Poucas coisas são mais bonitas que dar propósito e alento a quem dele precisa.
As empresas (públicas e privadas) com um quadro de 75 e 249 trabalhadores devem ter, pelo menos, 1% de pessoas com deficiência ao seu serviço. Já as entidades que empregam 250 ou mais trabalhadores devem admitir, no mínimo, 2% de colaboradores portadores de deficiência.