Editorial
Doar para reciclar
Entre a vontade de ajudar e a ajuda real, o balanço é francamente constrangedor
A vontade de ajudar está-nos no sangue.
Podemos passar anos indiferentes às necessidades de uma família que vive na nossa cidade, na nossa aldeia, no nosso bairro, ao fundo da nossa rua, mas quando a causa se torna viral, assumimos as dores alheias, arregaçamos as mangas e lançamos mãos à obra.
Queremos mostrar que somos generosos. Porém, a ânsia de colaborar nem sempre se traduz em ajuda real, muito menos em ajuda leal.
É ainda relativamente recente a tragédia que se viveu no norte do distrito de Leiria, em Junho de 2017.
O devastador incêndio, que ficou eternizado como o incêndio de Pedrógão Grande, gerou uma onda de solidariedade como há muito não se assistia em Portugal.
Aos concelhos afectados, chegaram toneladas e toneladas de bens, provenientes de vários pontos do País e até do estrangeiro.
Muitos destes bens foram providenciais para dar alento e uma nova oportunidade a quem, de um momento para o outro, ficou sem nada. Outros, nem por isso.
Como comentou na ocasião um responsável por uma instituição de solidariedade social, parecia que algumas pessoas “tinham aproveitado para fazer a limpeza ao sótão”.
Em Pedrógão Grande, por exemplo, um mês depois da tragédia, a Loja Social criada pelo município tinha várias salas repletas de roupa, os corredores atafulhados com sacos de vestuário por triar e, no exterior, existiam mais quatro tendas cheias de produtos têxteis.
Em frente a estas tendas, havia um monte com quase a altura de um adulto, adornado com peças de roupa inimagináveis numa campanha de solidariedade: desde disfarces de carnaval para crianças, a vestidos de noiva.
Houve até uma empresa benemérita que ofereceu várias toneladas de banana madura… isto para um concelho com cerca de 3.000 habitantes.
Anteontem, ficámos a saber que só em Leiria a campanha SOS Ucrânia, destinada a ajudar o povo ucraniano afectado pela invasão da Rússia, já reuniu bens suficientes para encher “mais de seis camiões de ajuda humanitária”.
Mas ficámos a saber também, pela informação prestada pela Câmara Municipal, que após a triagem dos bens encaminhados para o estádio municipal, foi posto de lado vestuário e calçado “danificado ou desadequado” em quantidade suficiente para encher “cerca de seis contentores”.
Ou seja, entre a vontade de ajudar e a ajuda real, o balanço é francamente constrangedor: metade dos doadores foram efectivamente solidários, a outra metade apenas contribuiu para a reciclagem.