Opinião

Envelhecer

16 jan 2020 14:50

Sonhava com menos intensidade. Sonhava mais pequenino. E sentia-se incapaz de contrariar esse facto. Como nascem os sonhos?

Houve um momento em que os sonhos pararam de crescer. Sempre sonhou muito e, de certa forma, permitiu que fossem esses sonhos a comandar os seus dias. Vivia em função do que sonhava e do que conseguia concretizar. E por isso é que sorria tanto.

Por isso é que dizia tantas vezes: “Sinto-me feliz.” Porque se sentia em equilíbrio entre o ideal e o possível.

Mas veio o momento em que percebeu que os seus sonhos já não se multiplicavam com a mesma espontaneidade de antes; já não faziam com que o seu olhar brilhasse e as suas mãos se agitassem com o mesmo entusiasmo.

Não quis falar do assunto a ninguém, mesmo quando começou a ouvir comentários sobre o facto de andar a sorrir menos. Mas começou a ficar apreensiva; e depois, com medo.

Sonhava com menos intensidade. Sonhava mais pequenino. E sentia-se incapaz de contrariar esse facto. Como nascem os sonhos?

De que se alimentam? Que parte do corpo ou do espírito está doente quando os sonhos começam a escassear? A que médico se vai? Tinha medo de perder a capacidade de sonhar, como outras pessoas perdem a capacidade de andar ou de ver. Medo de ficar deficiente. Quanto menos sonhava, mais o medo crescia. E foi ao consciencializar isso que entendeu: “É esse o problema. O vazio.”

Os seus sonhos diminuíam, deixando espaço livre; e esse espaço teria inevitavelmente de ser ocupado. E estava a ser preenchido pelo medo. Como numa versão pessoal daquela lei que afirma que na natureza nada se perde e tudo se transforma.

No seu caso: nada se esvazia, tudo se preenche.

“Se sonho menos, temo mais”, pensou. Como se existisse uma relação directa e proporcional entre sonhar e temer. Quanto percebeu isto, acalmou. As leis da física sempre a acalmaram, tal como rezar ou contemplar o mar ou comer chocolate acalmam outras pessoas.

As leis da física lembram-lhe que o universo é gigante e complexo, intrincadamente perfeito; lembram-lhe que perante a misteriosa perfeição do universo, as suas apreensões são insignificantes e risíveis. (Tinha criado uma lei da física apenas para si: “Se sonho, estou viva; se estou viva, sonho; e entre as duas coisas, durmo. Se durmo, sonho; se sonho, estou viva; e etc.”)

Nunca sentira medo, antes; talvez por estar tão ocupada a sonhar? Ou porque tinha medo de ter medo? Sim: receava que ao dar importância a um medo, ficasse sua refém. Mas não era precisamente isso o que acontecia em relação aos sonhos? Dominavam-na.

Não queria ser prisioneira dos medos mas talvez fosse prisioneira dos sonhos; o que consistia numa enorme contradição: os sonhos eram a expressão máxima da sua liberdade; como poderiam aprisioná-la? Quando pensou nisto, explodiu numa gargalhada. Um riso libertador. E tudo se compôs.

Quando intuiu que era no equilíbrio entre sonhos e medos que residia aquilo que habitualmente se designa como “envelhecer”, passou a rir mais.

Descobriu que rir diante do medo pode ser pelo menos tão libertador como sonhar. E foi então que os sonhos voltaram a crescer; mas menos descontroladamente.