Opinião

Fogo - o gatilho do Homem Moderno

11 ago 2022 10:39

Gosto de imaginar uma cadeia gigante que nos une àquele momento primário em que um hominídeo tornou o fogo seu aliado pela primeira vez

“Foi pelo fogo que o homem domou a própria natureza”
Jean-Anthelme Brillat-Savarin

Somos todos Africanos ou, pelo menos, toda a evolução do género Homo foi um caminho que se iniciou e terminou no continente Africano.

Um caminho pautado pela sorte, pelo acaso, onde as leis da natureza mantiveram o jogo eterno entre a aleatoriedade e a seleção natural para criarem o fluxo que haveria de desaguar no aparecimento do homem moderno.

Há cerca de um milhão e setecentos mil anos, o acaso fez com que um grupo de antepassados nossos ganhasse uma vantagem única na história da Vida: o domínio do fogo e o seu uso para cozinhar os alimentos.

O fogo foi um avanço tecnológico que veio permitir que os alimentos entrassem pré-digeridos no organismo, assimilando-se melhor os nutrientes e gerando uma vantagem biológica que, além de dar uma maior facilidade para se reproduzirem e espalharem os seus genes, ainda facultava aos hominídeos mais tempo livre para desenvolverem competências sociais.

Ao contrário dos seus semelhantes, não teriam de passar tanto tempo a procurarem e mastigarem alimentos para apenas existirem... Este boost energético libertou também o poder de construir um cérebro único: o nosso.

É fácil imaginar um cenário onde os nossos antepassados seriam os atores em torno de uma fogueira. Depois da refeição contavam histórias sobre a sorte e o azar. Sobre aquilo que não entendiam.

Deuses e heróis pintados a ocre e a terracota. Pela primeira vez, tinham mais tempo para olhar para as estrelas, para se questionarem, para criarem histórias e mitos. Um dia, estas histórias seriam a base da cultura, das religiões, acabando materializadas na escrita: Gilgamesh, Bíblia, Corão, Odisseia, Eneida...

Segundo esta visão, algures na aurora dos tempos, um antepassado nosso haveria de provar um alimento tocado pelo fogo pela primeira vez. Este antepassado haveria de o partilhar e de integrar esta feliz casualidade nos seus hábitos e nos dos seus companheiros.

Ao longo de centenas de milhares de anos deu-se uma transformação da morfologia e fisiologia, da psicologia e das relações sociais.

Um dia, os seus descendentes seriam capazes de se moldar e de moldar o mundo à sua imagem. Haveriam de ocupar todos os espaços, dominar todas as ecologias e adaptar o mundo à sua vontade.

A partir daquilo que os rodeava, haveriam de criar uma diversidade de pratos que fazem parte do DNA de cada povo de cada país, que, tal como a literatura e a pintura, fazem parte da sua cultura: humus, caril, jaquinzinhos com arroz de tomate...

Enfim! Uma Torre de Babel de diversidade cultural. E um dia até sobre isso haveríamos de competir. Porque a comida do nosso país é sempre a melhor!

No final, para quase todos nós, a melhor comida foi a das nossas mães e a das nossas avós. O nosso palato foi forjado nos primeiros anos de vida. Essas memórias são o padrão que nós usamos para avaliar tudo aquilo que gostamos de comer. 

A minha identidade foi criada num meio rural. Muito do que eu comia na infância era cultivado pelos meus avós. Recordo-me com saudades daquela cozinha simples, dos gestos da minha avó à volta do fogo e da forma como cuidava de nós.

A comida quase não viajava, comia-se o que era produzido e pouco se comprava. A sazonalidade reinava soberana sobre aquilo que ia dançando na nossa mesa.

Os alimentos sabiam como tinham de saber. Vinham diretamente da terra e do sol para o nosso prato, onde processos simples mantinham a sua essência. Era comida simples, sem artifícios. Passados tantos anos, ainda sinto essa influência e esse entendimento em mim. Essa procura da simplicidade.

Todos nós, pontualmente, temos as nossas extravagâncias e desejos: Foie Gras com um bom Sauternes, um bom Champanhe com caviar... No entanto, é sem as coisas simples que não conseguimos viver: pão com manteiga, torradas e meias de leite...

Ligado à nossa alimentação esteve sempre presente o amor daqueles que cuidaram de nós. Há uma tendência natural para cuidarmos como fomos cuidados. Para mim, cozinhar é, e sempre será, um ato emocional.

Faz parte dos meus alicerces. Seja pela partilha com os amigos e familiares com quem vamos criando as nossas histórias; com os miúdos (nada bate o prazer de os ver encharcados de chocolate desde o queixo até ao cabelo com um sorriso malvado absolutamente adorável!), ou então aqueles jantares que cozinhamos com um certo receio.

Olhamos em nosso redor para ver se tudo está bem.

Pegamos num copo de vinho, sentimos o aroma e adivinhamos um toque de campainha, um caminhar apressado, um semblante luminoso a rasgar o nosso cenário enquanto tentamos fingir que estamos bem seguros de que tudo vai correr bem.

Adoro esta maravilhosa ideia que defende que cozinhar os alimentos foi a centelha que iluminou o caminho da nossa evolução. Quando era miúdo, irritava-me que a Biologia não tivesse a elegância da Física e da Matemática.

Na Física, as regras são sempre as mesmas seja qual for o ambiente ou contexto histórico.

Contudo, com a velhice começamos a relativizar, procuramos menos certezas, entendemos melhor a beleza que mora no mistério, na sorte, no acaso.

E o acaso, a sorte têm sido fundamentais na evolução das espécies: se aquele meteorito não tivesse chocado com a terra há 65 milhões de anos, provocando uma hipotética extinção dos Dinossauros, nós não estaríamos aqui.

Existe uma história notável onde a fragilidade da espécie humana e a sorte são levadas ao limite. É uma das histórias mais bonitas da biologia e da evolução: a partir do estudo do DNA mitocondrial descobriu-se que há cerca de 150 000 anos existiu uma Senhora que é a ancestral comum de toda a humanidade.

Esta teoria de uma Mãe comum a todos nós, a Eva Mitocondrial, é absolutamente maravilhosa e o meu lado romântico gostaria que ela se mantivesse indelével ao teste do tempo. 

Tal como uma máquina de escrever antiga, que é um daqueles objetos onde o belo e o inútil colidem de forma perfeita, o grande romance da evolução é uma metáfora em que um Deus cego escreve, numa dessas magníficas máquinas, cartas de amor a Geia, a Deusa Mãe.

Os dedos periclitantes do Deus escrevem milhões de frases sem sentido.

E todas elas falham, não tocam o coração arisco da Deusa. Até que, na mais pura raridade, se dá um milagre e o acaso... a sorte criam a mensagem perfeita que a Deusa irá guardar para sempre dentro de si.

Escrever este texto mexe comigo, deixa-me feliz saber que existe evidência científica de que a cozinha foi tão marcante para a evolução da nossa espécie.

Gosto de imaginar uma cadeia gigante que nos une àquele momento primário em que um hominídeo tornou o fogo seu aliado pela primeira vez. A cozinha iluminou a mão do Deus cego e este tocou o coração da Deusa Mãe a nosso favor.

Devíamos cuidar mais Dela e regressar aos princípios daqueles que nos antecederam, às coisas simples que nos deixavam felizes, mas respeitavam a Terra.

Refletir sobre uma certa sabedoria que aquelas mãos rugosas e sábias transportavam sem vaidade... O tempo erodiu muitas das nossas memórias e agora, passados tantos anos, já nem nos lembramos de quando aquela cozinha frugal, mas mágica, nos tocou pela última vez.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990