Opinião

Há sempre uma dor qualquer, não é?

7 out 2021 15:40

Será que é quando fingimos ser o que não somos que mais nos revelamos?

Eles não sabem, mas gosto de chegar atrasado, quando já estão todos em pleno ensaio, e ficar durante uns instantes no exterior a ouvi-los: não tarda muito até que alguém ria, ou que vários riam.

É disso que gosto: esperar pela chegada de uma explosão de riso; e chega sempre.

Sim, é tolo permanecer à porta de um auditório a aguardar que venha um riso.

Mas tola é a maioria das coisas que nos faz sentir vivos. Amar é tolo, por exemplo; e é em redor do amor que organizamos a nossa vida.

O teatro também é uma forma de amor: vive de entrega e libertação, de partilha e confiança, de cumplicidade e superação, de paciência e generosidade.

Cada peça é um pequeno mundo de possibilidades onde cada um faz acontecer.

Este mundo em particular é formado por dezasseis pessoas que se reúnem uma ou duas vezes por semana para colocarem de pé uma peça cómica sobre o papel da arte e a importância dos ginásios.

Desafiaram-me a escrever, e eu escrevi; desafiei-os a deixarem-me assistir aos ensaios, e deixaram.

Há algo especial em imaginar personagens e situações que possam conduzir à reflexão e à interrogação, despertar emoção, provocar riso ou choro; algo de especial e de tolo, claro.

Mas a verdadeira magia não está em escrever uma peça, criando um pedaço de vida fingida usando apenas palavras.

A magia está em assistir ao nascimento concreto desse universo num palco, em assistir à conversão de palavra em acção e movimento, em som, em toque, em arrepio.

A magia nasce do que fazem as dezasseis pessoas que se transcendem e superam durante as três horas de cada ensaio.

No modo como se entregam e se libertam, como se deixam conduzir por um instinto ou por uma vontade, por uma inspiração, por uma indicação ou por um ralho, por um elogio.

Será que é quando fingimos ser o que não somos que mais nos revelamos? Depois de entrar, passo a fazer parte das gargalhadas.

E integrar uma gargalhada colectiva é das coisas que mais sentido dá aos dias.

Rimos. Porque o texto que escrevi é parvo, e eles vão acrescentando-lhe as suas próprias doses de parvoíce; dão algo de si, deixam a sua marca.

Construímos juntos, rimos juntos. Rimos apesar do cansaço e da frustração, do medo, da tristeza e da incerteza; apesar da dor.

Porque há sempre uma dor qualquer, não é? Mas rimos: porque integrar uma gargalhada colectiva é das coisas que mais sentido dá aos dias. Isso e as minis, diria o Americano.

(Esta peça é uma produção do grupo de teatro O Alguidar, com encenação de Rita Rosa. As apresentações marcadas para 8 e 9 de Outubro esgotaram em meia dúzia de dias, havendo ainda a possibilidade de assistir na data extra de 16 de Outubro. Além da Rita, o sol à volta do qual gira este mundo, a peça é resultado do esforço e dedicação do Mickas, da Marise, da Sílvia, da Carla, do Pedro, do Carlos, do Patrick, da Catarina, da Isabel, da outra Isabel, da Ana Gabriela, da Mónica, do Ricardo, da Ivone, do Hilário, da Sara, da Mélanie, do Licínio e da Beatriz. Chama-se Há sempre uma dor qualquer, não é?)