Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Restos do Vento

26 mar 2023 10:53

Mais do que as personagens, que na maioria são unidimensionais, o que é central no filme é a natureza humana

Restos do Vento é um filme com um argumento de Tiago Guedes e Tiago Rodrigues, realizado por Tiago Guedes, que conta no elenco com Albano Jerónimo, Nuno Lopes e Isabel Abreu, atores que dão corpo e voz às personagens em torno das quais a narrativa se constrói. É mais uma produção portuguesa, lançada no final de 2022 (disponível na HBO), que mostra que o cinema nacional está de boa saúde e se recomenda.

A ação de Restos do Vento passa-se num Portugal rural e decorre em dois momentos que nada, para além do envelhecimento das personagens, parece distinguir. O filme foi rodado em Meimão, aldeia perto de Penamacor, mas poderia tê-lo sido em qualquer uma das muitas aldeias portuguesas sobre as quais o mundo globalizado, fragmentado, heterogéneo, com laivos de civilidade e tolerância em que hoje habitamos parece não ter tido qualquer impacto, seja na realidade física e arquitetónica, seja no sentir e viver das pessoas.

É à aldeia, enquanto entidade incorpórea e malévola, presa num tempo cíclico, que cabe o papel central. O filme alimenta-se duma claustrofobia quase insular, marcado pela violência estrutural de um espaço onde o amor parece não entrar.

O desconforto do espetador começa logo na primeira cena, que decorre em meados dos anos noventa, quando um grupo de jovens mascarados (a lembrar os caretos de Podence) comemora a tradição do dia em que o vento está à solta com um ritual de iniciação rude e humilhante que marca a sua entrada na masculinidade. Depois de validados pelos mais velhos, os jovens perseguem as raparigas para as vergastar enquanto estas fogem, para divertimento dos restantes habitantes, entoando a ladainha: “vem o vento do deserto, misturar o errado e o certo, vem o vento, sopra forte, não é ele que traz a morte.” As festividades acabarão por culminar num ato de violência coletivo, um crime sem castigo que todos aceitam sem culpa nem remorso.

Vinte e cinco anos depois, o filme mostra as mesmas personagens, adultos de meia idade transformados naquilo em que a vida e a sorte os tornou: empresário, GNR, enfermeira, maluquinho da aldeia. Vidas banais, alimentadas de pequenos rancores. A geração dos filhos replica os pais em total simetria, seja na vulnerabilidade feminina, seja na misoginia masculina. É neste contexto que ocorre um novo crime, um homicídio que transforma o filme num thriller policial e, por momentos muito breves, leva o espetador a crer que a ordem moral pode vir a ser restabelecida. Mas o vento que sopra nas eólicas, em movimentos circulares que se perpetuam sem fim, é um dispositivo visual e sonoro que permite antever que o presente replicará o passado, até à cena final, quando as máscaras são recuperadas e o ritual repetido.

Mais do que as personagens, que na maioria são unidimensionais, o que é central no filme é a natureza humana. O vento, que mistura o errado e o certo, parece soprar sobre todos e dentro de cada um. Quer dos mascarados que, ao abrigo do anonimato, praticam o mal sem responsabilidade ou culpa, quer das outras personagens que, sem máscara e absolvidas pela violência que sobre elas foi exercida, se calam, abandonando os mais fracos ao seu destino. E o espetador, que passa do desconforto ao horror, percebe que, no final, é o mal total, coletivo e legitimado, que permite o restabelecimento da ordem.