Opinião
Música | Chilly é do piano, é do rap e é de onde lhe apetecer
Entre o kitsch e o culto, o clássico e o electrónico, o improviso e a composição, vale tudo e, mais do que isso, quer-se tudo
Chilly Gonzales é um daqueles nomes que parece inventado. E é. Como quase tudo o que rodeia esta personagem tão peculiar da música contemporânea. Jason Beck, canadiano de nascença e cidadão do mundo por vocação, cresceu com a convicção de que a música precisava de alguém que abalasse, com engenho e ironia, as fronteiras estéticas e as relações da indústria. Um performer que tanto pode aparecer de smoking como de fato de treino, como de robe e pantufas, inseparável do corpo ou da alma do seu piano — que rima, compõe, improvisa e ensina — tudo com a mesma seriedade desarmante com que goza com a própria seriedade.
O seu percurso é tão variado que podia muito bem ser uma mixtape: começou com formação clássica, apaixonou-se pela música contemporânea, mergulhou no hip hop e subiu ao palco ao lado de Peaches, com quem partilhou a irreverência e a estética electroclash dos anos 2000. Colaborou com a amiga de infância Feist e emprestou o seu toque de mestre a discos dos Daft Punk, Drake ou Jarvis Cocker.
Mas Gonzales é muito mais do que o som dos outros — é um universo à parte. Arrebatou um recorde do Guinness por tocar piano durante 27 horas e 3 minutos (de robe, claro), lançou álbuns de rap acompanhados apenas por piano e orquestra, criou a série Solo Piano, onde esculpe pequenas peças melódicas que podiam muito bem fazer parte do reportório de Erik Satie... se este tivesse conhecido o pop.
Entre o kitsch e o culto, o clássico e o electrónico, o improviso e a composição, vale tudo e, mais do que isso, quer-se tudo.
Nas letras e na performance, usa sempre o humor como bisturi, flutuando sempre entre o professor excêntrico e o entertainer nato.
Talvez por isso seja tão difícil de catalogar — porque Gonzales não cabe num género, não vai em correntes nem em modas, mas tem sido um protagonista decisivo para várias.
Gonzales cabe num palco, numa gravação ou num imaginário onde a música possa ser, antes de mais, melodia ao serviço da expressão, da provocação e da experimentação.