Opinião

Música | Haiti em Nova Iorque e Berlin em Seoul

11 jun 2022 20:00

Breaking The Thermometer aparece-me, assim de mansinho, como uma das grandes descobertas para este ano musical de 2022

Layla McCalla nasceu no bairro nova-iorquino de Queens e cresceu em New Jersey a ouvir histórias da terra natal dos pais, o Haiti, e a testemunhar por casa o constante activismo e empenho na defesa dos direitos civis. Com formação clássica, Layla nunca deixou de piscar o olho à guitarra e ao bajo e às músicas do mundo e à folk e a sua aventura em New Orleans, aos 25 anos de idade, com o projeto The Carolina Chocolate Drops, chegou mesmo a valer-lhes um Grammy. Mas passemos à sua carreira a solo que, depois de bons registos como A Day For The Hunter e Capitalist Blues, conta, desde há poucas semanas com o irrepreensível Breaking The Thermometer, que, mais do que um conjunto de canções, transpira documentação da luta pela liberdade no Haiti.

Com um trabalho de pesquisa nos arquivos da Rádio Haiti, usa a expressão “breaking the thermometer to hide the fever” como alegoria para o movimento social tantas vezes contido e reprimido pela força, Layla constrói um disco maior onde não falta o crioulo local, os testemunhos de esperança contida, de jornalistas detidos e nem sequer uma releitura de um tema menos óbvio de Caetano Veloso (que com “Haiti” tinha levado esse grito a tantas outras paragens). Bastavam “Fort Dimanche” (o nome de uma prisão de má memória), “Vini Wi” para chamar à atenção desta obra prima e Breaking The Thermometer aparece-me, assim de mansinho, como uma das grandes descobertas para este ano musical de 2022.

Noutro hemisfério acabei por ser surpreendido pela deslumbrante dupla sul coreana Haepaary, que alia várias estéticas da electrónica de influência germânica com a tradição e os instrumentos tradicionais coreanos. A forma como uma exímia produtora manipula máquinas e elementos de percussão e a vocalista de formação clássica recupera tradições vocais medievais e outrora cantadas apenas por homens para incorporar as letras que cria e interpreta é tão inesperada como surpreendente e impactante. Estão ainda nos primeiros passos de uma carreira que já começa a ser reconhecida no universo mais indie e depois de terem passado na última edição do norte-americano South By Southwest podem certamente ambicionar outros palcos.

No dia anterior a termos conseguido ver as Haeparry ao vivo num pequeno clube em Daegu, estivémos em Seoul e quando chegámos ao coração da cidade encontrámos uma pequena praceta, chamada Berlin Square, onde estão exibidos três blocos do Muro de Berlin e uma escultura de um urso rodeados de bancos, candeeiros e até árvores tipicamente alemãs. Disseram-nos que era também uma marco que lembrava que a própria Coreia tem uma história de divisão mas que há memórias de outras divisões que vale a pena trazer para a rua e que nos dão fé num futuro melhor. Não deixei de pensar nisso quando me arrepiava a ver e ouvir as Heaperry ao vivo.