Opinião
Música | Plena participação artística
Se 0,5% das pessoas com algum tipo de deficiência pudessem ter uma plena participação artística (e profissional) estaríamos a falar num universo de mais de trezentos mil empregos
Há alturas em que precisamos de parar para refletirmos sobre algumas das percepções com que crescemos e que consideramos naturais. Precisamos de procurar informação. E procurar é normalmente mais exigente porque vai para além do que uma rápida pesquisa nos oferece, porque nos faz questionar as fontes, a evolução, a intenção, a semântica ou a terminologia.
Foquemo-nos então na temática que normalmente é descrita como deficiência, nas pessoas que normalmente são descritas como pacientes ou institucionalizados, na condição inata (ou adquirida) que, logo a partir da terminologia, os lança para fora de tanta possível participação. No último ano passámos a estar muito envolvidos com os 5ª Punkada, banda da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra que já conta mais de 25 anos de actividade e com a qual gravámos o seu disco de estreia, que levámos para palcos ditos “normais” e para festivais, como o Bons Sons. O seu videoclip foi nomeado para os Prémios Play (ao lado de nomes como Ana Moura ou Chico da Tina) e como ninguém sabia quem poderia ganhar o galardão, eis que uma cerimónia do Coliseu de Lisboa com transmissão televisiva teve que providenciar uma rampa desde a plateia onde os convidados jantavam até ao palco onde se entregavam os prémios.
O documentário que a Casota Collective fez sobre o processo de trabalho com eles foi nomeado para a selecção oficial do Womex (um dos maiores festivais mundiais do sector da música que recebeu mais de 3.000 delegados de todo o mundo na passada semana no Altice Arena).
Acreditamos agora que, por muito amor e compaixão que tenhamos perante uma causa nunca nos apercebemos do óbvio, há factos e estatísticas para os quais nunca queremos olhar e há razões óbvias para ignorarmos o óbvio e continuarmos apenas a tentar beliscar um status quo quando é preciso muito mas muito mais.
No seio musical tendemos a falar da acessibilidade muito direccionada para a lógica de quem queira eventualmente vir assistir e… quem quer e merece e tem capacidade para participar do outro lado, no palco, nos bastidores, na produção? Na verdade, a audiência aumenta quando têm iguais ou semelhantes em cima do palco ou na máquina que faz acontecer.
Segundo os dados do Eurostat de 2001 sobre deficiência e participação social havia cerca de 15% da população europeia com algum tipo de deficiência, agora façamos uma analogia: 0,5% da população europeia trabalha directamente ligada ao sector da música e dos espectáculos, segundo dados de 2022 da Statistic. Isto, traduzido por miúdos quer dizer que se, por mero acaso, 0,5% das pessoas com algum tipo de deficiência pudessem ter uma plena participação artística (e profissional) estaríamos a falar num universo de mais de trezentos mil empregos e, consequentemente, de muitos milhares mais de audiências. E de um novo normal realmente interessante e estimulante.
Nunca fui muito bom em francês mas, uma após outra, fui dirigido ao MDH-PPH de origem canadiana, um modelo de desenvolvimento humano sobre o processo de produção de deficiência que coloca o ónus (fundamentado por questões históricas e socioculturais e na grande maioria das vezes negligente e sem a mínima noção) na sociedade. Foca-se no conceito da desvantagem infligida por todos a quem tem uma limitação inata ou adquirida. E uma limitação, inata ou adquirida, não implica falta de capacidades, falta de empatia ou falta de amor. Ao contrário de uma limitação infligida, como aquela com que todos nós, muitas vezes sem intenção, compactuamos. Temos muito a aprender.
Obrigado aos 5ª Punkada, por uma das mais bonitas lições e por todo o amor que me têm dado.