Opinião
Nós. Vocês. Toda a gente.
Talvez seja esse um dos maiores poderes da arte: despir-nos das funções que achamos que nos definem e remeter-nos ao que nos torna humanos
"Estamos privados de liberdade, mas não estamos privados de sonhar". Diz um jovem recluso concluindo a apresentação de Nós. Vocês. Toda a gente, na tanoaria do Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens numa tarde chuvosa de Junho de 2021.
Está presente a maioria das setenta e nove pessoas que ao longo de um ano construiu de raiz este pedaço de ópera (a versão completa será apresentada no próximo ano), envolvendo em regime de co-criação uma equipa profissional e dezenas de reclusos e seus familiares.
A assistir a esta sessão estão várias dezenas de reclusos que não tiveram qualquer participação no projecto. É um momento puro e intenso, sem mediação nem artifícios.
Um momento em que a aproximação entre todos é potenciada pelo ritmo e pela melodia da música (pela respiração da música), numa experiência de partilha que une num nível elementar de conexão que dispensa a racionalidade.
A essa respiração primordial da música junta-se uma estória, que é a estória de todos: dos solistas que a cantam, dos coros que lhe dão colorido, dos actores que compõem os seus detalhes; e do público, que a torna sua.
Gostaria de fazer uma pergunta a cada uma destas pessoas. O que sente o recluso que canta e a mãe do recluso que canta?
O que sente o recluso do público que não se manifesta e o que ri com gosto? O que sente o guarda prisional que assiste? O que sente o maestro e o solista e a violoncelista e a encenadora?
O que sente a directora da prisão e o coordenador do projecto?
Gostaria de perceber se por um mágico e fugaz momento o recluso e o guarda e o maestro e a directora e o solista e a mãe deixam de ser recluso e guarda e maestro e directora e solista e mãe para serem apenas pessoas, simplesmente pessoas, sem funções nem atributos, sem obrigações nem responsabilidades, sem condicionalismos, mas apenas pessoas unidas numa emoção partilhada; pessoas unidas na compreensão momentânea de que talvez cada indivíduo seja composto por uma multidão de indivíduos.
Unidas na compreensão de que na essência somos pessoas, e não funções. E se todos sentissem o mesmo?
Que talvez cada um de nós, e de vocês, e de toda a gente, seja formado por escolhas e erros, por contextos e acasos, por mistérios e incompreensões, por bondades e maldades, por egoísmos e sonhos, por culpas e medos, por fantasmas e certezas.
Talvez seja esse um dos maiores poderes da arte: despir-nos das funções que achamos que nos definem e remeter-nos ao que nos torna humanos, confrontar-nos com a mescla de contradições que nos forma; recordar-nos o que nos aproxima do outro.
Convidar-nos a olhar para o outro, a colocarmo-nos no lugar do outro, a procurar ligarmo-nos ao outro. Quantas destas pessoas terão sentido esse convite?
A apresentação da ópera termina, mas o entusiasmo ainda é palpável.
Com contrariedade, cada pessoa retoma a sua função. A tanoaria esvazia-se em silêncio. Sem que notasse, deixou de chover; e quando saio a inesperada luz do sol cega-me.
Não, não estamos privados de sonhar.