Opinião
O dia seguinte e o contrato social
Quando somos testemunhas indiferentes de uma injustiça pactuamos com quem é injusto
Em democracia, o dia anterior a qualquer ato eleitoral é consignado à reflexão. Já o dia seguinte ao ato eleitoral dedicamo-lo à análise dos resultados. Elencam-se ganhadores e perdedores. Festejam-se uns e repreendem-se outros. Alguns – muitos – sentem-se justiçados porquanto aqueles a quem atribuem a razão dos legítimos males que os afligem saíram derrotados.
Enfunam-se de certezas porque amanhã, sim, todos os seus anseios sonhados se vão cumprir em pleno, enaltecendo-se em poses, por vezes, de soberba, falam alto e exibem rubicundos rostos enquanto se saúdam de uma vitória que têm por soberana. Desentendido que sou das estratégias subliminares da política, no dia seguinte dou por mim a refletir sobre o meu voto.
Hábito antigo e que tento transmitir aos meus próximos, sobre este ato e sobre todos os outros com que se fazem os dias, como meio de falarmos verdade connosco mesmos e de contradizermos sempre o que acreditamos ver e entender como certo ou definitivo. É assim como quem ora a um deus qualquer: qual foi o maior erro que cometi hoje para que com esse reconhecimento o possa reparar, se possível, evitando repeti-lo amanhã, e qual foi a coisa que aprendi hoje que possa amanhã ser útil a alguém e a mim mesmo?
Ao dia em que alinho estas ideias e as faço palavras, assisto, incomodado, às imagens possíveis que nos chegam de um outro ato eleitoral na, por enquanto, longínqua Rússia. Uma eleição em que antes de ser efetuada já tinha resultado anunciado, eleitores vigiados por militares que não se coíbem de entrar na cabine de voto para garantir o único voto certo. Autocracia no seu melhor desempenho quetão-pouco necessita já de fingir que o não é, assumindo-se como repressora à vista de todos. Modos de governar que merecem o silêncio cúmplice de alguns dos nossos setores políticos que se apregoam como agentes de limpeza do nosso País, e por esse silêncio apoiam e enaltecem o modo como gostariam de governar em Portugal.
Quando somos testemunhas indiferentes de uma injustiça pactuamos com quem é injusto, quando nos silenciamos perante a repressão estamos a apoiar o repressor. A História está aí para no-lo demonstrar. Ao dia em que alinho estas ideias e as faço palavras, ainda paira a dúvida sobre o resultado final do nosso último ato eleitoral, mas – e é o que mais importa! – paira um nevoeiro cerrado sobre a validade de uma afirmação proferia segundo a qual “não é não”, pelo que os resta aguardar da sua consistência ou se apenas era um caso de semântica.
Por enquanto, nestes dias de reflexão, resta-nos acreditar na convicção do contrato social que é suposto estar presente em cada um de nós, o reconhecimento do outro com o seu direito à diferença sem que a diferença seja sinónimo de menos direitos, que a dignidade e honradez pautem a atitude empática de nos vermos como iguais renunciando pretensão de nos posicionarmos como melhores que os outros, considerando que o mais humilde e desfavorecido é sempre, intrinsecamente, uma pessoa de bem.