Opinião

O incalculável valor do Humanismo

3 dez 2021 15:45

É preciso compreender que a literatura não é uma estrutura inerte

Detenho-me numa epígrafe contida no mais recente livro de Manuel Frias Martins (MFM), A Lágrima de Ulisses, ensaio magistral publicado pela Editora Exclamação.

Na inscrição da autoria de Edward Said, um dos mais relevantes intelectuais, crítico literário e activista político-social da causa israelo-palestiniana, infelizmente já falecido, registo uma verdade irrefutável sobre a virtude do humano: “amadorismo é o desejo de se ser movido não por lucros ou recompensas, mas por amor e por um interesse insaciável num plano mais abrangente, em gerar conexões que atravessem linhas e barreiras, em recusar estar preso a uma especialidade, em se interessar por ideias e valores apesar das restrições da profissão” (tradução de MFM).

O posicionamento deste aglutinador de sabedoria literária, assumidamente discreto mestre do mundo, que transporta em si todo um legado que nos instrui a que sejamos lugares com menores invisibilidades, com mais emergências e maior justiça cognitiva, convoca-nos à virtude da interioridade.

Para MFM, o texto não está limitado à obra e ao livro. É preciso compreender que a literatura não é uma estrutura inerte.

Ela é um acto localizado no mundo, uma tradução organizada pelo artífice da escrita, que nos detém em distintas forças mundanas.

Essa tradução está filiada noutras obras, noutros discursos, mas sobretudo, na narrativa da realidade. A função da literatura é essa: suscitar uma reflexividade estimulando a consciência.

Se “dizer” o mundo é representá-lo, e se representação é discurso, será impossível isentar o texto da responsabilidade em filiar-nos numa visão particular: dos valores, dos silenciamentos, das violências simbólicas e dos limites do ser humano.

O verdadeiro escritor é um “amador”. Recusa a posição de especialista com o seu vocabulário e interlocução exclusiva dos leitores, fomentando as representações da realidade e a responsabilidade de “leitor-actor”.

O escritor, ao considerar-se um membro actuante, (não somente promotor de um mero gesto recreativo), preocupado com o que o rodeia, empenha-se em levantar questões morais.

Além disso, o espírito do escritor como “amador” pode transformar a rotina meramente circunstancial da maioria das pessoas em algo mais intenso e clarividente, tornando isso conciliável com um pensamento e implicação singulares.

É ampla a nossa mutabilidade e instável o nosso lugar no Mundo. É preciso abraçar o Humanismo a favor das instâncias da sobrevivência, por via da arte e dos seus cambiantes ou entrelaçamento de saberes, pontilhando a vida de literatura, música, dança, teatro ou pintura. Mesmo que tenhamos de recorrer às tecnologias.

A literatura, que historicamente sobreveio da poesia, é indissociável dessa moção que tão bem relevam os versos de Aimé Césaire: porque não é verdade que a obra do homem está acabada // que não temos nada a fazer no mundo // (…) // ao contrário a obra do homem apenas começou // e falta ao homem conquistar // toda a interdição imobilizada nos recantos do seu fervor // e nenhuma raça possui o monopólio da beleza, da inteligência, da força // e há lugar para todos no encontro marcado da vitória.

Sejamos, pois, artífices e obreiros do amadorismo que torne vitoriosa a Humanidade.