Opinião
Otimismo diletante
É certo que o Primeiro-Ministro falava há uns anos da vaca voadora, mas parece-me que um cenário deste género exigiria outro tipo de vaca
Na semana passada fomos brindados com interessantes declarações do Presidente da República, a propósito do número de denúncias de casos de abuso de crianças e menores na Igreja portuguesa que já foi conhecido. “(…)
Perante um universo de pessoas que se relacionam com a Igreja Católica [na ordem] de milhões de jovens ou muitas centenas de milhares de jovens. Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado porque noutros países com horizontes mais pequenos houve milhares de casos” (excerto da peça do Público, de 11/10/2022).
Ou seja, diz-nos o Presidente da República (ainda que tenha depois tentado emendar a mão) que não foi assim tão mau. Fico curioso – e receio que a curiosidade nunca fique satisfeita – qual seria o número que o senhor Presidente da República consideraria preocupante. Desde que foram iniciados os trabalhos de uma comissão independente que recolhe denúncias (avaliando a sua credibilidade) sobre casos de abuso sexual por membros do clero católico português, ficam claras três coisas: (1) são práticas reiteradas ao longo do tempo; (2) por um número significativo de clérigos; (3) com o conhecimento e encobrimento da hierarquia da Igreja Católica em Portugal.
À medida que foram ficando claras estas coisas, o Presidente da República desdobrou-se em comentários e “opiniões pessoais” procurando desvalorizar a situação e defender os responsáveis pelos alegados encobrimentos, nomeadamente os cardeais Policarpo e Clemente, para além do bispo Ornelas. Não é, no entanto, de espantar a postura otimista Ficaram célebres, durante a discussão sobre o aborto em 2006/2007, as declarações do então comentador Marcelo que distinguiam a lei e a prática: “é proibido, mas pode fazer-se”, como ficou imortalizado no sketch do Gato Fedorento.
Para o católico conservador Marcelo parece ser mais importante proteger a Igreja Católica do que a República Portuguesa. Afinal, o importante é ser otimista em relação às situações – sobretudo aquelas que envolvem as consequências de ações, omissões ou intromissões da Igreja. Também a terceira figura do Estado português parece acometida de um irritante otimismo (também este não surpreendente).
O Orçamento do Estado apresentado na semana passada assenta numa perspetiva económica que parece ser escrita por Lewis Carroll, tais são as maravilhas relatadas. Enquanto grande parte do mundo (como a Alemanha, por exemplo) confirma que terá uma recessão, Portugal não só escapará como tem um crescimento interessante. A inflação diminui e só os mais intelectualmente limitados é que dirão que os portugueses vão perder poder de compra: afinal, os salários aumentarão 20% até 2026 – “se houver condições”.
É certo que o Primeiro-Ministro falava há uns anos da vaca voadora, mas parece-me que um cenário deste género exigiria outro tipo de vaca. Não sei se fui eu que acordei encarnado o Velho do Restelo, mas o otimismo que perpassa por estes dias nas altas figuras do Estado português deixa-me particularmente amofinado.