Opinião
«Pescoço»
De olhares pouco abonatórios, os habitantes, de cotovelos colocados nos peitoris, questionavam aquele comportamento
Quando chegou à aldeia, toda a gente temeu o desconhecido. É legítimo temer o desconhecido. É legítimo! E ponto! Fisicamente robusto, musculado, de tez ligeiramente escura, o rapaz aparentava não ter mais de vinte anos. Ocupou a casa de uma mulher da terra a quem se desconheciam descendentes, mas que, afinal, os tinha. Aquele, todos o perceberam, era um deles.
Os hábitos tornavam-no, ainda, mais temível. De manhã à noite, subia e descia o único caminho circulável e esburacado que trespassava a aldeia. De molas de roupa nas calças, a guiar uma bicicleta invulgar e requintadamente artilhada agravava, mais, ainda, os medos da populaça. Criticá-la? Claro que não. Era desconhecido, e ter medo do desconhecido, é legítimo. E ponto!
Depois de percorrer ladeira acima, ladeira abaixo, sentava-se no banco de pedra da fonte, pegava num pequeno bloco de papel, sacava do lápis que suportava na orelha direita, tal qual um carpinteiro, e anotava algo que despertava, ainda, mais inquietações.
De olhares pouco abonatórios, os habitantes, de cotovelos colocados nos peitoris, questionavam aquele comportamento, assim como, falavam da característica que mais sobressaia no rapaz.
Um pescoço excessivamente fino e longo, de uma altura fora do comum, detinha, também, outra deformidade: era completamente torcido e inclinava para o lado direito!
«Estrambólico!», «Monstruoso!» «Que anormalidade!», proferia a população já cansada de tanta subida e descida, desejando que ele caísse da bicicleta e demorasse a recuperar da queda.
Imune, porém, aos comentários, o «Pescoço», como passaram a chamar-lhe dado o esquisitóide defeito corporal, lá galgava caminho, cada vez mais rápido, desviando-se, eximiamente, dos buracos cravados no chão.
De um momento para o outro, passou a circular, de braços abertos ao vento como fazem as aves quando planam, o que piorou a opinião que dele já tinham.
Certo dia, um táxi parou junto à casa do rapaz.
A aldeia estremeceu. Temia o desconhecido, o que é legítimo. E ponto!
Um casal abraçou o rapaz.
Depois, o seu longo pescoço desapareceu no interior do táxi.
Uma criança, de pescoço alto, agarrada ao pescoço torcido do rapaz, de lá saiu. Era débil e frágil. «Pescoço» colocou-a, cautelosamente, numa espécie de cesto almofadado, na fronte daquela bicicleta artilhada. Consultou o bloco de apontamentos, assinalou o trajeto com o dedo e olhou nos olhos do irmão. Foi, então que a aldeia estupidificou. O pescoço da criança, fino, rígido e estático foi como que entrançado pelo do rapaz, acentuando, assim a inclinação que já detinha.
De olhares cúmplices, lá foram, ambos, ladeira abaixo, gargalhando de felicidade.
Envergonhada, a população percebeu, ainda a tempo, a razão da inclinação do pescoço de «Pescoço».
Resumia-se a algo esquisitóide e, para tantos, desconhecido. Resumia-se a um amor incondicional, genuíno e verdadeiro.
Criticar? Não, claro que não! É que, por ser desconhecido e incondicional, é legítimo que tantos dele tenham medo.
E ponto!
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990