Opinião

Ressuscitar é para meninos

25 abr 2022 12:19

Ao deus Dará

Difícil é viver manietado por caixotes e ter uma história para vos contar que não seja sobre carregar e esvaziar uma coisa que nós próprios montámos. Sei por alto que o Zelinsky continua fortíssimo como herói e que o PCP está mesmo no ponto para ir ao ar. Parece que também descobriram agora que o Guterres é um frouxo xoninhas. E para todos os efeitos o Amorim é o maior.  Mas eu só tenho enfiado abas de cartão por baixo de outras abas de cartão para depois andar a saltitar por cima delas enfrentando desafios pouco ortodoxos para a coluna e pouco mais sei. 

Devo-vos dizer que chumbei na catequese, mas do que conheço da história a Páscoa deveria dar uma cabazada ao Natal em termos de hype católicófestivo. Num há uns efeitos especiais de concepção manhosos, três gajos a camelo no deserto guiados por uma estrela e um menino que nasce no meio dos animais. Está certo. Mas no outro, já é, para o bem e principalmente para o mal, uma cena com mais ingredientes humanos. Temos porrada, traição, perdão, banquetes a altas horas, uma seita, mulheres, pão e vinho feitos do corpo de um gajo e chicotes e espinhos e crucificações e aquela sensação que podemos atribuir à ressaca de morrer um bocadinho e só voltar à vida três dias depois. Eu não acredito e não estranhava nada se um dia destes descobrissem que a bíblia tinha sido escrita por um só Pessoa lá da zona! mas para todos os efeitos, se procurarem com minucia, diz por lá que perdoar cronistas que falham datas e assuntos garante um belo terreno na eternidade para todos.

Com tudo isto, que é pouco, a acontecer, a única ideia que soa por aqui é esta: Não sei se cheguei a viver acima das minhas possibilidades, como alguns disseram, mas estou farto de o fazer aquém das expectativas. Das minhas, dos outros e de todas as variações de vices versas que não conhecem vencedores. Talvez seja produto da dor causada pelo abandono da pequena comunidade e seus rituais a que pertenci nos últimos anos. Do Bairro. Do vinho da tropa do café em copos de galão. Do homem e a sua demanda em alimentar os animais desvalidos. Das senhoras de pijama a passearem os cães à noite sob a luz mais barata. A boquilha da professora reformada. As agências noticiosas à janela. O glamour decadente das madames enfiadas nas mises.  Todas as falhas andantes do quarteirão. Como é que um homem vive sem um bairro? Sem dominar o seu meio? Como pode um homem deixar as vizinhas do prédio sem nós por lá? Sem os miúdos, sem as piadas, sem o cravanço de ovos, vegetais e açucares e as sugestões de consumo de especiarias fumadas pelo prédio. O que é que vai ser delas sem o nosso cuidado? Como é que isto aconteceu? Como é que estou falido demais para continuar a viver no bairro dos viscondes falidos. Para o raio mais os senhorios. As imobiliárias. Os impostos. Os preços. A redução do poder de compra que, como vocês sabem,  é aquele poder que compra as coisas que definem como é que vivemos.  Para o diabo mais a vida de adulto. Mas eles que se alambazem com os lucros e com a guita e com as propriedades herdadas e que nos mandem para fora da cidade. Quero ver como é que ela fica sem a classe média à rasca. Sem o brilho da nossa tragédia.  Como é que é vamos pagar as coisas que temos de pagar? Como fazem os monoparentais? Os do salário pouco mais que minimo? Como é que sobrevivem? Como é que chegam ao fim do mês sem a corda vincada no pescoço?

As expectativas é que nos atraiçoam. São inalcançáveis. Queríamos viver de uma certa maneira. Ter um certo emprego. Um certo amor. Uma certa casa. Um certo estilo de vida. Tudo em bom e ajustável às circunstâncias e aos caprichos que o desejo e as luas e os impossíveis nos trazem. Muito perto do que achamos merecer, mesmo ali juntinho ao que precisamos. Só nos resta viver a personagem que conseguimos o melhor que conseguirmos. E por muito atractiva ou inevitável que nos pareça a ideia, nunca nos deixarmos seduzir  pela soberba de sucumbir à tristeza incapacitante.

Mas hoje devia ser sobre a liberdade, não era? Todos os dias, não era? E se calhar até é. Isto de querer ser, de tentar ser, de ambicionar, de sonhar, de não conseguir e falhar, e voltar sempre ao nosso pé, ao ressuscitar depois da queda, ao exercício de liberdade e prisão com que temos de lidar enquanto respirarmos.  Podemos sempre não alcançar, provavelmente assim o faremos, mas saber que existe alguma coisa do lado de lá de onde estamos e reclamarmos a possibilidade de lá chegar é uma dádiva e uma pena que a liberdade nos conquistou. Agora só falta a paz para muitos, o pão para outros tantos, a educação para demasiados e a habitação a preços que o comum do mortais que trabalha para viver possa pagar sem ter de abdicar de um rim, de um filho, ou da dignidade, para os gajos como eu.