Opinião

Tranquilamente vigilante

9 out 2020 11:45

As birras, se desajustadas em frequência e intensidade, podem merecer alguma preocupação.

 

Como qualquer profissão, ser pai e ser mãe exige meter as mãos na massa. A aprendizagem é diária, constante, apresenta nuances de filho para filho e nunca se sabe tudo. Aliás, costuma dizer-se que são os filhos que ensinam os pais a ser pais e se há coisas indissociáveis, esta é sem dúvida uma delas, a teoria concretiza-se na prática.

Assim, é perfeitamente legítimo que os pais cheguem às apalpadelas àquilo que é a parentalidade, desconhecendo as principais etapas do neurodesenvolvimento das crianças, ignorando o que é típico ou atípico, assim como eu não conheço os procedimentos inerentes a uma profissão que não exerço, ainda mais se se tratar de um primeiro filho, onde tudo é novidade e não existe termo de comparação. Depois, há ainda a variabilidade implícita a estas etapas, tornando ainda mais difícil saber se é ou não normal a apresentação ou ausência de determinada característica ou aquisição e mesmo que tudo ocorra dentro dessa variabilidade há que analisar a sua funcionalidade (ex.: uma criança pode apresentar uma linguagem formalmente correta, mas o conteúdo ser bizarro) e se necessário as variações culturais.

Muitas vezes, apenas com a entrada na escola se identificam dificuldades até aí despercebidas, talvez porque em contexto familiar não eram consideradas como tal. A dinâmica familiar mais ou menos estruturada ou flexível, pode, naturalmente, entrar em conflito com as rotinas escolares, sendo necessário um período de adaptação que em norma se ultrapassa. A socialização, a partilha e as regras subjacentes ao novo contexto implicam uma reorganização tanto para as crianças como para as respetivas famílias. Contudo, existem alguns sinais de alerta que podem ajudar os pais a identificar atempadamente determinadas problemáticas.

É comum os pais referirem, orgulhosamente em consulta, que os filhos são muito organizados ou deveras curiosos. Acharem graça ao fascínio que revelam em relação a certos temas, muitas vezes pouco típicos da idade, ou enaltecerem o facto dos brinquedos estarem sempre impecavelmente arrumados e alinhados ou elogiarem a destreza manual fora de série que os filhos demonstram ao fazer rodar qualquer objeto que encontrem. Também as dificuldades na expressão linguística são muitas vezes compensadas pela maravilhosa compreensão que fazem de tudo: ele ainda não fala, mas percebe tudo.

No entanto, essas peculiaridades poderão não estar isentas de segundas interpretações. As birras, por exemplo, consideradas apanágio das crianças, se desajustadas em frequência e intensidade, podem merecer alguma preocupação, assim como algumas “manias”, entendidas pelos pais como inofensivas e que na realidade poderão ser estereotipias comportamentais (ex.: uma criança que aos dois anos não anda ou anda sistematicamente em pontas ou uma criança que a partir dos três anos mantém flapping dos braços quando excitada).

Falar tarde, não usar o pronome pessoal “eu”, não olhar nos olhos, usar uma linguagem sofisticada, seguir rotinas de forma inflexível, não saber as cores ou mostrar dificuldade na nomeação rápida… são exemplos de sinais que devidamente contextualizados com a idade e realidade das crianças e famílias podem deixar uma pulga atrás da orelha. No entanto, nenhum deles por si só é sinal de alarme, mas sim de vigilância.

A ideia não é de todo assustar os pais, mas mais uma vez sensibilizar e, na dúvida, consultar um especialista no assunto. O ideal é adotar uma atitude meio termo. Nem desvalorizar nem sobrevalorizar, parece fácil!