Opinião

Um ano das nossas vidas repleto de nevoeiro

5 mar 2021 15:35

A pandemia está a pôr em risco as nossas necessidades fisiológicas e de sobrevivência de segurança, de relacionamento, amor e intimidade, de pertença, de autoestima, confiança e de realização pessoal, sobretudo nos jovens

Passou um ano das nossas vidas.

Desde Janeiro que estamos a viver os piores momentos da pandemia no nosso País.

O vírus está mais perto de todos.

A vida mantém-se virada de pernas para o ar e um nevoeiro cerrado abateu-se sobre nós.

O medo e o estado de alerta inicial deram lugar à fadiga e à exigência pessoal e emocional que este segundo confinamento nos provoca. Estamos exaustos, aborrecidos, tristes, zangados.

Nos noticiários diários continuamos a assistir ao desfilar de números de casos infectados e de números de mortes e isto deixa-nos ansiosos, tensos por dentro.

As pessoas tornam-se números e não pessoas que têm um rosto e uma história para contar e isto atordoa-nos porque nos impossibilita de nos reconhecermos no espelho do outro.

E, de repente, passamos a viver uma espécie de “pandemia abstracta” que nos vai dessensibilizando silenciosamente, diminuindo a nossa capacidade de sentir e a nossa empatia.

Os dias sucedem-se uns aos outros numa grande incerteza que “não mata mas mói”.

O elevado sofrimento psicológico, com o aumento da ansiedade moderada a grave, da perturbação de stress pós-traumático e da depressão na população é confirmado pelos dados que estão a ser recolhidos quer em Portugal, quer em todo o Mundo.

Da Organização Mundial de Saúde (OMS) chega-nos o conceito de “fadiga pandémica” enquanto uma “reacção natural e esperada” à adversidade e à incerteza relacionada com o desgaste emocional vivido em torno do coronavírus.

E na verdade é aqui que o perigo espreita. Exaustos e desmotivados, mais facilmente descuramos os comportamentos de protecção e a procura activa de informações credíveis relacionadas com a Covid-19 e vamos acusando uma certa complacência, indiferença ou anestesia afectiva com a diminuição do sentir, pondo em risco a nossa protecção e a dos outros.

A psicologia da pandemia é complexa, pois não se trata apenas de um assunto viral e epidemiológico como sistematicamente temos vindo a assistir.

Existem todos os outros aspectos de compreensão da natureza humana e da sua humanidade que importaria contemplar desde o primeiro momento.

Em todo o mundo, a maioria das respostas em saúde mental foram organizadas reactivamente (e bem!). Mas o que agora precisamos são respostas proactivas que assegurem a continuidade dos cuidados necessários à crise de saúde mental agravada.

Percebemos hoje que apostámos muito pouco na antecipação dos cenários que ao longo deste ano fomos assistindo: as dificuldades de comunicação e de divulgação de mensagens claras em função dos diferentes grupos alvo; a xenofobia emergente a toque de um instinto cego de sobrevivência; a polarização da sociedade e os seus paradoxos constantes; a quantidade de informação que viaja a uma velocidade atroz e que se torna muito difícil de mentalizar; os negacionistas e os “Velhos do Restelo” em cada esquina; também os trolls a espalhar fake news sem termos logo a percepção disso; o medo e o pânico que muito nos paralisaram; a ausência dos ritos que nos coartam a capacidade de simbolizar; os meses de sofrimento já vividos e o aumento das situações desesperantes todos os dias; um rasto de doença com perdas reais e um semnúmero de urgências sociais assentes em fortes assimetrias provocadas pela crise sanitária e económica instalada que, como sabemos, são dos principais ingredientes no adoecer mental.

No fundo, a pandemia veio exacerbar a profunda crise da saúde mental que já vivíamos há muito entre nós, amplificando as suas carências e as enormes dificuldades de acessibilidade, ao continuar a ser considerada “o parente pobre” da saúde no SNS.

Byung-Chul Han no seu livro A Sociedade Paliativa (2020), diz- -nos que “o vírus é o espelho da nossa sociedade”, porque “evidenciou a sociedade em que vivemos” (p.25). E eu não podia estar mais de acordo, principalmente quando pensamos em saúde mental.

A pandemia está a pôr em risco as nossas necessidades fisiológicas e de sobrevivência de segurança, de relacionamento, amor e intimidade, de pertença, de autoestima, confiança e de realização pessoal, sobretudo nos jovens que nos questionam directamente se vão ter um futuro.

E viver apenas sob a égide das necessidades fisiológicas e de sobrevivência, é sobrevida e mais nada, tal como Byung-Chul Han também afirma: “O vírus invade a zona de bem-estar paliativa e transforma-a numa quarentena, na qual a vida se suspende para sobreviver. (...)

O prazer também tem de recuar perante a sobrevivência” (p.25) e a vida fica “despojada de qualquer narrativa com sentido” porque “deixa de ser narrável e passa a ser mensurável e contável” (p. 26).

E uma sociedade que não investe, não cuida e também não reclama o seu direito à saúde mental, é uma sociedade destroçada.

É urgente que os nossos dirigentes passem a ouvir mais a psicologia e incluir os colegas, enquanto peritos em comportamento humano, nas suas discussões sobre o estado da nação para conseguirmos manejar tudo isto com maior dignidade humana, maior compreensão e respeito pela vida mental e emocional. Isto porque a saúde mental é um direito humano.

Só assim poderemos sair deste nevoeiro cerrado e caminhar rumo à esperança e à realização pessoal que nos faz brilhar.