Opinião

Um antídoto chamado Educação

10 out 2022 15:23

Biologicamente, não existem raças. A diferença genética entre humanos é completamente irrelevante

Há muitas gerações, um caçador regressa a casa. A cor escura da sua pele é uma adaptação ao clima do Continente Africano. Duas crianças vislumbram a sua silhueta ao longe e sorriem felizes numa corrida desenfreada que irá desaguar no abraço do seu progenitor. Estas crianças partilham a cor de pele do seu pai e dos seus antepassados, cor esta que lhes permite sobreviver naquele clima tão quente. A imagem de um pai a regressar a casa para junto dos seus ir-se-á repetir por muitas gerações ao longo da cadeia do tempo. Esta é uma cadeia de amor e de luta pela sobrevivência iniciada na austeridade da aurora da civilização. Os sucessores do caçador cuidariam da sua família apoiados na vantagem biológica da cor da pele.

Contudo, muitos anos depois, alguns dos seus descendentes europeus viriam a sofrer pequenas mutações que lhes viriam a conferir uma cor de pele mais clara. E, no final, os filhos dos filhos dos filhos ir-se-iam encarapuçar e matar por essa diferença de cor da pele que tinha sido fundamental para a sobrevivência dos seus ancestrais. Outros criariam princípios sociais de segregação racial, como uma classificação que existiu durante o século XX chamada “regra de uma gota de sangue”. Segundo este princípio social, quem tivesse tido um antepassado negro seria considerado uma pessoa negra. Como se isso fosse uma doença!... Por ignorância, por medo, por sede de poder, ou por outro motivo qualquer, os descendentes de pele branca daquele caçador (um pai que os filhos alegremente abraçavam) desenvolveram teorias pseudocientíficas que defendiam que um conjunto de características evidencia de forma clara a superioridade da raça branca (o chamado racismo científico, por exemplo).

Mas a verdade é que somos todos descendentes de africanos, toda a evolução do Homem aconteceu naquele continente. A cor da pele deixou de ser uma proteção natural para se tornar um estigma. Todos os nossos antepassados tinham uma pele escura, todos os skinheads e defensores da supremacia branca “desevoluíram” de antepassados de cor. Biologicamente, não existem raças. A diferença genética entre humanos é completamente irrelevante, como tem sido amplamente demonstrado por todo o pensamento científico. A Paleontologia, a Genética e todos os ramos da Biologia já deram mais do que provas da não existência de raças, do erro que é existirem classificações artificiais que apenas servem o interesse do lado errado da natureza humana. Como referi no meu último artigo, há evidências da existência de uma mãe comum a toda a humanidade há cerca de 150 000 anos: a nossa proximidade genética é absoluta.

Só que é preciso sermos humildes o suficiente para querermos ver que todo o preconceito não faz sentido e, acima de tudo, é preciso termos a sorte de nos cruzarmos com as pessoas certas para nos mostrarem o caminho para essa humildade.

Tive dois professores verdadeiramente brilhantes, um deles de psicologia, cujas aulas tinham sempre uma certa teatralidade, sempre uma história da aldeia onde ele cresceu. E estas histórias eram a base do assunto que nos haveria de ensinar. Era maravilhoso! Um dia mostrou-nos um filme de François Truffaut: O Menino Selvagem. Este filme e a sua discussão incutiram-me a ideia da importância da cultura e da educação na construção de um ser humano. No final, a educação e a cultura ou a ausência delas demonstram que um ser humano é muito mais do que a sua máquina biológica. A genética, se não for estimulada pelo ambiente certo, não produz seres humanos completos. Nós somos a nossa genética em interação com o nosso ambiente… somos o resultado do nosso corpo com as interações do mundo. O nosso Eu é aquilo que sobra das carícias e das chapadas que o Mundo nos dá.

O outro professor era de filosofia e deu-me a conhecer a história do Homem de Piltdown. Este foi um dos maiores logros científicos da História. Na Inglaterra do século XIX, tentava-se provar que a origem do homem tinha sido na Europa. A descoberta de um fóssil que provava esta ideia foi muito bem aceite, pois, apesar de forjada, ia ao encontro dos desejos da época. Os logros da Ciência em prol de uma História da Humanidade ocidentalizada são um dos grandes perigos para a construção da sociedade que deve ser livre de preconceitos e cada vez mais educada.

No começo de mais um ano letivo, quero aqui homenagear a importância de pessoas que marcam o nosso percurso com conhecimentos realmente importantes. O Ensino deve ser uma experiência que nos torna pessoas melhores, pois há sementes que ficam dormentes no nosso interior.

No meu 12.º ano, tinha explicações de Matemática num lugar onde aqueles professores também eram explicadores. Encontrei-os muitas vezes a conversar sobre temas que fluíam alegremente entre literatura e motocultivadores, Sartre, Camus e a melhor época para plantar tomates e cebolas. Eram duas figuras realmente peculiares! Sempre cultivaram as marcas da sua origem, transportando com orgulho todas as particularidades de quem tinha crescido no meio rural. No entanto, toda a sua ruralidade vinha num embrulho de cultura avassalador! Ambos tiveram uma forte influência em mim. O seu conhecimento era apenas igualado pelo tamanho do perímetro abdominal que tinham preceito em cultivar numa tasca que ficava naquelas redondezas. Entendo-os tão bem!!!!! Provavelmente, nunca serei metade do professor que eles eram e, com toda a certeza, nunca saberei metade do que sabiam. Eles, tal como muitos outros que se cruzaram comigo, ajudaram-me a construir uma visão mais positiva daquilo quero ser: a simplicidade, a tolerância, são qualidades que tento cultivar, procurando assim ser um pouco menos egocêntrico. Às vezes é tão difícil sermos pessoas melhores! Mas é a luta que mais vale a pena abraçar!

O Mundo onde crescemos conta-nos, de facto, uma história fortemente ocidentalizada. Vivemos sob um signo onde a competição, o conseguir ultrapassar e o querer ter mais servem as nossas motivações e alimentam uma pirâmide cujo topo não conseguimos vislumbrar. Um mundo de pertença material e de individualismo, onde o principal fator de sucesso é o que se tem e não o que se É. Um mundo cujas fronteiras servem muitas vezes as classificações artificiais daqueles que o pretendem dominar. Essas fronteiras existem dentro da mesma rua, da mesma escola ou do local de trabalho. O conhecimento e a educação são os mecanismos para a construção de uma sociedade mais justa. É conhecendo as trapalhadas históricas e percebendo a arte, a literatura e o cinema que enxergamos que o Homem é muito mais do que os componentes mecânicos da sua máquina. Não há sentido no determinismo biológico. Nós somos o conjunto das nossas experiências e o que verdadeiramente nos distingue é a forma de agir e de querer ser.

Em última instância, se for para classificar... hmmm… acho mesmo que um racista não é da minha raça.