Opinião

Uma certa ideia de beleza

20 jun 2024 16:21

A verdade de quem não tem nada a perder

Chega de manhã com um pedido ainda velado no olhar. Faz limpezas a dias. Numa rotina de hábitos que mudam à porta de casa de cada família que assiste. 

Acabou de consultar o contentor do lixo de um dos bairros onde trabalha. Tem sempre surpresas. 

Na mão esquerda traz um corte feito com o vidro quebrado de uma moldura que alberga uma pequena tela de um quadro fulgurante de cor e vida. Uma árvore impressionista pintada em tons de verde, amarelo ocre e azul. O sangue do corte ameaça tingir a tela que protege como um tesouro.

Pomos a reprodução a salvo e desinfectamos o corte. O penso rápido afasta o perigo. Descreve-me com cuidado o poder que a pintura encerra e o que desperta nela - uma mulher de 70 anos, que mal sabe ler e que tem a seu cargo um marido inválido, uma mãe em estado de demência, muitos filhos, alguns netos -, a harmonia das cores, o brilho que emana do quadro, a força de uma natureza indómita e alheia ao desvario do mundo.

O pedido velado nos olhos revela-se, por fim, com uma ingenuidade a um tempo comovente e desconcertante. A verdade de quem não tem nada a perder. «Conseguia pintar um quadro igual, mas maior ou tirar uma fotografia ampliada à tela para eu pendurar os dois em minha casa?  Tenho duas paredes vazias.»

Digo-lhe que não sei pintar assim, mas que tenho um amigo que trabalha numa casa de molduras e que vou ver o que consigo fazer... Verifico a autoria da reprodução na tela no Google Images e chego à obra de um pintor italiano do princípio do século XX - Michele Cascella (ORTONA, 1892 - MILANO, 1989). 

O quadro chama-se Primavera. 

Talvez uma certa ideia de beleza – ou de qualquer outra coisa ainda sem nome, apesar daquela que o quadro transporta – more afinal, a par de tantas interrogações, num lugar fora da tela.