Opinião

Visão

16 out 2022 19:12

A vista é um sentido que antecipa os outros. Antes de acontecer permite-nos ver o barulho, o sabor e o cheiro, e perceber o toque

Trazia na vista a solidão de quem vê e não pode partilhar. Era sentido, por isso não havia como expressar. Sorrir pelo que se vê, sem que haja quem veja o sorriso, faz ricochete na alma. Alumia com o brilho da felicidade.

Apesar de os outros não serem apenas um espelho que nos reflecte, a sua imagem constrói-se também a partir de nós. Estamos sós quando estamos só nós. O nosso ser e a percepção dele. O credo desta existência soturna fazia lembrar que a divina consciência tem um lugar terreno. Como um ícone ou um penduricalho de ter ao pescoço nos lembra assim que existe. Ou aquele beliscar de braço a meio de um sonho, ou de uma fantasia irreal. Porque há fantasias necessárias e promíscuas de verdade futuras, que nos permitem ir para além daquilo que os demais acreditam e nos impõem.

É a experiência própria no centro da acção, como a fenomenologia dos sentidos. A filosofia do estar e ser. A vista é um sentido que antecipa os outros. Antes de acontecer permite-nos ver o barulho, o sabor e o cheiro, e perceber o toque. Li há pouco tempo sobre a tradução de um bailado para invisuais, o desafio era transferir os gestos para palavras na mesma velocidade, para uma experiência entre linguagem, a do corpo e da palavra. Leva tempo para escolher as palavras. A coordenação olho-mão, cujo excelso praticante Roger Federer se retirou há pouco, está no âmago do gesto preciso. Do cirurgião ao oleiro, ver e agir, em conformidade e precisão. Mas também ver e agir e reagir sentindo as alterações que ocorrem, aceitando as transformações que o processo origina. Um pouco como o improviso. Um pouco com a navegação à vista. É escrever sem rumo que traz sentido à frase? Começar a escrever uma coluna de um jornal sem saber como acaba que traz o sabor à comida?