Entrevista

António Moreira de Figueiredo: “Não há aldeia ou vila que não tenha criado o seu próprio Polis”

4 jul 2022 09:39

Arquitecto e antigo técnico superior na Divisão de Planeamento, na Câmara de Leiria, dá o seu ponto de vista sobre o estádio e a evolução do urbanismo na cidade

António Moreira de Figueiredo
Jacinto Silva Duro
Jacinto Silva Duro

Qual foi, em Leiria, a maior intervenção arquitectónica, nas últimas décadas?
Do ponto de vista visual e da transformação da cidade e devolução de espaços aos leirienses, o Polis é incontornável. Mas há um trabalho que tem sido feito lentamente e que começou por volta dos anos 80 do século XX, com a constituição do primeiro Gabinete Técnico Local no município, coordenado pelo arquitecto José Charters Monteiro, que foi evoluindo e, com maior ou menor intensidades, foi produzindo efeitos sistemáticos. Hoje, o centro histórico de Leiria não é o mesmo de há 40 anos. É evidente que este trabalho de recuperação de edifícios, depois apoiado pela constituição do Gabinete de Reabilitação Urbana e pelo trabalho que a minha colega Vitória Mendes desenvolveu, acompanhando a transformação do centro histórico, é muito importante. E, claro, há obras de regime. Algumas nascem num regime e acabam noutro, como o estádio. O estádio de Leiria seria escusado, se não houvesse a doença do futebol. Na época, penso que, dos políticos no activo, apenas Tomás Oliveira Dias se manifestou publicamente contra nos jornais. E é um homem do PSD. A candidatura ao Euro começou no tempo do engenheiro Lemos Proença e todos os partidos, concordaram que se fizesse na fase de candidatura, muito antes de 2004, mas quando foi preciso criar um modelo económico para a execução daquilo, não chegaram a acordo. A ideia de, mais tarde, criticar a presidente em exercício, Isabel Damasceno, por ter avançado com o projecto.... Se ela não o tivesse feito, é que a teriam crucificado! O estádio é uma obra com demasiada dimensão para aquele local. O anterior, projectado por Roberto Charters, nos anos 50, com as bancadas "agarradas ao terreno", tinha a dimensão adequada, porém, era necessário acolher 30 mil espectadores, devido às exigências da indústria do espectáculo - aquilo é indústria, não é desporto!.... Até percebo que tenham escolhido aquele local, atendendo ao que se passa em Aveiro, que escolheu criar um estádio fora da cidade. Foi exigência de Isabel Damasceno manter a pista de atletismo, quando a quiseram tirar, para estarem com os olhos em cima da bola. Isso permitiu fazer campeonatos de atletismo, que são uma mais-valia. Não conheço o processo em detalhe, mas, em traços largos, a ideia que tenho foi que toda a gente queria o estádio, mas quando foi preciso pagá-lo, já não o queriam. Agora há que rentabilizá-lo e resolver o problema do topo norte,

O que gostaria de lá ver feito?
Acompanhei o projecto que estava a ser desenvolvido por Pedro Cordeiro, para acolher um "ninho" de alta tecnologia e sinto que, de facto, o que é preciso é dar vida e função aquilo. 

Que avaliação faz do urbanismo de Leiria?
O urbanismo de Leiria é o possível. Desde 1965, quando saiu a Lei dos Loteamentos, que o Estado entregou a construção das cidades aos privados e demitiu-se da função. Nos anos 60, 70, 80, o loteamento tornou-se a base da construção da cidade. Cada proprietário faz no seu terreno aquilo que lhe interessa, de acordo com a majoração possível para as mais-valias que obterá. Isto é completamente diferente do que acontece na Alemanha. Ali, a mais-valia resultante da transformação do solo rústico em urbano, não é para os bolsos dos privados, é para o Estado, ou seja, para todos nós! Aos proprietários, é pago o valor do terreno. Apenas em Évora acontecia o mesmo. Era o município que promovia, adquiria os terrenos, fazia as urbanizações e vendia os lotes. O desenho da cidade, a planificação das ruas, a ligação entre elas, a localização dos equipamentos e toda a concepção urbanística eram do município. Deixaram de o fazer porque os proprietários e os empresários da construção eram contra. Cheguei a dizer ao vereador do Urbanismo de Évora, que deveria fazer uma parceria com Leiria. Aqui a construção da cidade é 100% privada e lá era 100% municipal. Não tem de ser exclusivamente uma coisa ou outra, mas o Estado não pode fazer o que fez no resto do País. Apesar de ir criando instrumentos de ordenamento do território, como planos de urbanização ou de pormenor, torna-se difícil controlar e ter eficácia no desenvolvimento da cidade. Na exposição "Leiria Tamanho e Desenho", que está em exposição no Museu de Leiria, de que sou seu comissário, faço um apanhado do conhecimento que fui reunindo acerca da história urbana de Leiria e, através de mapas, explico o que aconteceu desde a sua fundação. Há lá um painel, com quase todos os nomes das urbanizações. São todos de quintas. Quinta do Alçada, Quinta do Bispo, Quinta de Santo António, Quinta do Seixal, Quinta de São Venâncio, Quinta de Vale de Lobos, Quinta dos Maristas, Quinta de Santa Clara... o que aconteceu? À volta de Leiria, até aos anos 60, havia quintas e casais, que se foram transformando em urbanizações! Toda a toponímia da cidade resulta da transformação de terreno que o proprietário urbanizou ou que vendeu a alguém que ali investiu, grande parte das vezes, com capital vindo da emigração. Gente que foi trabalhar para a França e Alemanha e que regressou com pecúlio razoável para fazer investimentos. 

Mas a autarquia tem de gerir o território tendo em atenção as expectativas dos privados. O Plano Director Municipal (PDM) não facilita essa tarefa?
O PDM é uma figura do ordenamento que trabalha na escala de 1/25 000, a escala militar. São definidos os grandes locais onde as coisas devem acontecer e os PDM, que surgiram em 1982, tornaram-se obrigatórios, porque se os municípios não os criassem, não teriam acesso aos fundos comunitários. O PDM surge por causa dos fundos comunitários e não por vontade de organizar o que quer que fosse! Aquilo que os municípios pretendem é ter alguma flexibilidade, para servir determinados interesses ou porque há soluções melhores, quando há uma transformação da realidade e os documentos estáticos de planeamento não permitem agir. Era preferível a Administração Pública desenhar a cidade em função do interesse comum e não apenas por ser do interesse de alguém em majorar e obter mais-valias por via de um processo construtivo. Até pode ser bom para essa pessoa, que vai ganhar dinheiro, mas pode não o ser para a qualidade de vida dos cidadãos. Neste modelo, as grandes infraestruturas e equipamentos é a Administração Pública que tem de os criar. O crescimento de Leiria foi feito de acordo com aquilo que era possível com os instrumentos de ordenamento existentes. Não se pode recusar uma coisa "porque sim". Tem de haver um fundamento. O que tentamos fazer é minimizar os impactos. Fazemos desenho de cidade, dentro do possível, com aquilo que é proposto pelos privados. E depois ainda há outras questões como a geometria dos edifícios, os espaços verdes...

O público tem a impressão que criar espaços verdes numa cidade é difícil, porque choca com o interesse do promotor imobiliário que gostaria de construir em 100% da área disponível.
Apesar de a legislação definir o número de metros quadrados destinados a equipamentos e a zonas verdes, ela contém, a forma de dar a volta a estas obrigações. O promotor paga e não cria aquilo a que está obrigado. Criaram-se mecanismos, que são, na prática, taxas, que substituem aquilo que o promotor teria de dar. O promotor paga e a autarquia pega nesse dinheiro e faz os equipamentos. 

Os cidadãos habituaram-se a zonas como o Polis e querem vê-lo replicado na cidade. No entanto, em Leiria, há zonas da cidade que apenas são acessíveis de carro. É impossível chegar-lhes a pé.
Há vários casos disso, como a zona de Parceiros, de Santa Clara.... Em 1978, quando foi feita a variante do IC2 naquela zona, a Junta Autónoma das Estradas esteve-se marimbando, apesar de ter sido avisada várias vezes pelo município e pelos habitantes dos Parceiros. Quem projecta estradas nacionais não quer lá peões, nem sequer pensa neles. Até põem sinais a dizer que é proibido o acesso a peões, bicicletas e carroças. O nó

Este conteúdo é exclusivo para assinantes

Sabia que pode ser assinante do JORNAL DE LEIRIA por 5 cêntimos por dia?

Não perca a oportunidade de ter nas suas mãos e sem restrições o retrato diário do que se passa em Leiria. Junte-se a nós e dê o seu apoio ao jornalismo de referência do Jornal de Leiria. Torne-se nosso assinante.

Já é assinante? Inicie aqui
ASSINE JÁ