Entrevista

Rui Torrinha: “A criação é a forma como uma cidade se emancipa, como toma em suas mãos o seu próprio destino”

16 jan 2020 10:09

Em Guimarães, última cidade portuguesa Capital Europeia da Cultura, o director artístico do Centro Cultural Vila Flor fala da herança do evento e da importância de uma política para as artes

Rui Torrinha é também o responsável pelos festivais GUIdance e Westway
Ricardo Graça

Que ecos lhe chegam do que se vai fazendo em Leiria?
O primeiro passo que um território tem de dar para construir uma identidade é criar um programa e um contacto regular com as artes, dentro da diversidade possível. Acho que Leiria está a tentar, tanto quanto percebo à distância, criar as fundações. No fundo, essa ideia de movimento artístico, que é importante. Foi um pouco esse o percurso de Guimarães. Começou por ter programação, chegou a um momento em que percebeu que tinha de dar o passo seguinte, que era criar equipamentos que permitissem que a programação tivesse outro tipo de condições, e agora, já nesta fase, o grande objectivo da missão é a criação. E eu acho que a criação é a forma como uma cidade se emancipa, como uma cidade toma em suas mãos o seu próprio destino.

Que cidade seria Guimarães sem o projecto da Capital Europeia da Cultura que se realizou em 2012?
Há dois planos. O primeiro tem a ver com a visão que se tem de continuidade, que políticas culturais existem e se definem para um concelho, a questão da permanência e da regularidade. E depois, obviamente, quando criamos essa hipérbole do programa para um determinado ano, em que há uma abrangência e um impacto muito maior, o que se consegue, para além das infra- -estruturas que se podem gerar, tem que ver com a importância que a cultura tem na vida das pessoas. É como se fôssemos um surfista: estamos na maré baixa, vamos apanhar a onda, e, quando a onda quebra, ela já quebra num sítio maior. Significa que há uma consciência generalizada, um maior interesse por parte da população.

Qual era o ponto de partida?
A cultura em Guimarães foi sempre promovida por muitas associações que ainda hoje existem. O grande desafio foi, dentro da própria Capital, perceber como é que essas associações poderiam beneficiar de uma reestruturação, de um crescimento e de um olhar semi-profissional, ou seja, como é que poderíamos, a partir do voluntarismo, criar um caminho mais sólido.

O associativismo não lhe parece o melhor enquadramento?
Num ecossistema, isso tudo tem de existir. Para mim, o grande factor de observação da evolução das coisas está na rua, está naquilo que surge de toda a iniciativa espontânea do olhar independente. E também acho absolutamente fundamental que uma instituição não se sobreponha àquilo que já existe. Nem tudo tem de acontecer no Vila Flor. Tem de haver uma cena independente na cidade, tem de haver uma cena diversificada. A questão das associações é vital, na minha perspectiva, porque é aí que se experimenta muita coisa.

É fácil gerir a herança da Capital Europeia da Cultura?
Guimarães é apontada lá fora como exemplo de sucesso das capitais, que, normalmente, têm resultados muito duros e às vezes até destrutivos. Houve sobretudo um acontecimento que levou a que a Capital fosse muito importante, que foi a vivência do espaço público. Esta candidatura não construiu muitos edifícios, temos três edifícios que foram confiados à gestão da Oficina, que são o Centro Internacional das Artes José de Guimarães [CIAJG], o centro de residências artísticas em Candoso e a Casa da Memória, que é um centro de interpretação.

Não há elefantes brancos.
O que há é um desafio porque [o CIAJG] é outro edifício desta dimensão [do Vila Flor] e é um desafio porque mais uma vez Guimarães dá um passo arriscado, no sentido de ser um projecto à frente do seu tempo. É um projecto de artes visuais, não é um projecto de grandes massas. O grande risco que existe é que, quando tratamos do futuro, quando falamos do futuro, quando projectamos o futuro e o que queremos fazer, demora tempo a construir essa relação e esse entendimento, essa descodificação. O Centro de Criação de Candoso tem sido uma peça-chave, nuclear, na estratégia de tornar Guimarães uma cidade de criação. O CIAJG é também um museu distinto, afirmado do ponto de vista conceptual. Depois, há um pós-Capital, muito difícil de gerir, que resulta de duas coisas, essencialmente. Primeiro, todo o processo da Capital é complexo, sobretudo a parte financeira, porque é um processo de reembolso. Chegou um momento em que houve estrangulamento financeiro. E isto na relação com os artistas criou feridas que foi necessário resolver por quem cá ficou, que fomos nós. Outro aspecto tem a ver com o excesso, que é estarmos um ano inteiro a massacrar o País e chega o momento em que, por mais incrível que seja a nossa programação, as pessoas estão cansadas de ouvir falar de nós.

É uma espécie de ressaca?
É uma grande ressaca, que obriga a repensar a intensidade, a repensar como comunicar.

Em Leiria, nesta etapa, em que se está a preparar a candidatura, que impactos já se podem esperar?
O momento da Capital Europeia da Cultura é uma espécie de realidade aumentada de todo um percurso. Não pode ser uma coisa ficcionada, construída apenas para aquele ano. Quem vai analisar a candidatura, seguramente, vai olhar para o percurso que está a ser feito do ponto de vista programático, do ecossistema cultural, as políticas culturais do concelho. A ideia de um concelho forte, que aposta na cultura e que, por apostar na cultura e ter uma visão para a cultura, é premiado com esta atribuição. Portanto, o que acho que se vai jogar nestes anos, é, no fundo, testar a capacidade genuína dos concelhos de, realmente, quererem ou não ser a Capital Eu

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