Entrevista

Tobias Monteiro: “Fazer teatro ou cultura, é tão prestigiante quanto operar uma pessoa num bloco operatório”

22 jul 2021 17:30

O actor da Batalha sente que a região poderia e deveria apostar mais na profissionalização da cultura e na qualidade daquilo que contrata para oferecer ao público. Explica ainda a sua concepção de um Serviço Nacional de Cultura

Jacinto Silva Duro

Estreou o seu projecto que leva uma oficina de teatro num teatro móvel aos mais novos, a Arca dos Contos em Movimento, na sua escola primária, na Batalha. Foi um regresso a casa?
É um projecto que tem anos de sonho, de tentativas e de busca de várias formas de financiamento. A primeira vez que o projecto surgiu, pensei em alugar a carrinha, que já existia, mas custava um balúrdio fazê-lo. Algum tempo depois, tentei negociar com a agência de comunicação e marketing que era proprietária, e o dono disse-me que se queria desfazer dela. Passámos - eu e a associação Kind of Black Box - para outra estratégia, a de adquirir a viatura, porque servia a minha ideia de ir até às escolas do interior do País, que estão fora dos sítios privilegiados com muita oferta cultural e pdeagógica. Eu já fazia A Arca dos Contos, que tem como base um jogo de cartas criado pela Maria Teresa Meireles, que me cedeu os direitos e que mo deixou utilizar. Ela achou óptima esta ideia de adaptar este jogo, que ensina os meninos a escrever uma história, e que, adicionando-lhe mais alguns passos, permite que a representem num palco, como estamos, eu e a Patrícia Duarte, a fazer. É um formato que pode ser feito num dia ou até numa semana na escola. Os miúdos entram para a carrinha e, com base no baralho, constroem, tiram as informações para escrever um enredo e, depois fazemos um ensaio. Dentro da carrinha têm tudo o que é figurinos, adereços e cenários e até um palco. Ela depois abre-se e transforma-se numa espécie de black box... A Kind of Black Box, a ideia serve o nome da associação que já existia muito antes de imaginarmos vir a ter a carrinha. Quando me surgiu isto, pensei "isto é perfeito porque é uma espécie de black box, realmente". Está a funcionar com esta oficina para crianças, mas pode ser usada para concertos ao vivo, pode funcionar nas feiras do livro, para conversas e debates, ou até numa campanha de recolha de sangue! Para a comprar, tentámos várias vezes o concurso da DGArtes... e a nossa candidatura era considerada elegível, mas nunca conseguíamos apoio por falta de dotação financeira que chegasse. Isto é serviço público, e ficar sempre, ali, um pouco abaixo da linha de água. Deixava-me angustiado.... Mas conseguimos. Agora, quando chego às escolas com a Arca, costumo dizer aos miúdos: "vocês estão habituados a pegar no tablet ou no smartphone, descarregar uma aplicação e as coisas acontecem. Mas estão a perder a capacidade de perceber que podem fazer acontecer coisas. Com este projecto, quero afastar-me da ideia que muitos têm do "lá vêm estes desgraçadinhos numa carroça com o teatro". É uma ideia poética e clássica, mas as crianças, hoje, estão habituadas a um outro nível de sofisticação e à tecnologia. A nossa carrinha é uma black box dotada de tudo. Tem luz, tem som e não é nem rudimentar nem rústica. É muito sofisticada. Se me tivessem apresentado isto na escola, teria adorado e isso foi parte da razão que me levou a pegar neste projecto. Quando comecei com a Arca dos Contos e ia às escolas e às salas de aula, ia com uma malinha na mão, com figurinos e o jogo das cartas, e entrava no espaço deles. Estava na sala de aula deles com os estímulos que eles vêem todos os dias.


Leva, às costas, um espaço mágico.
Agora levo uma arca ambulante que estaciono à porta, ou lá dentro. Tenho-os na minha mão, porque entram no meu terreno, portanto, quem dita as regras sou eu, enquanto que, na sala de aula, quem as dita são eles e a professora. Ali é mais difícil tê-los a jogar as minhas regras. Isto surgiu porque queria mostrar-lhes que ali podem fazer... que, em três horas, podem montar um espectáculo. Com um baralho de cartas, meia-dúzia de roupas, uns adereços e noções que vão da adaptação de um texto narrativo a um dramático, ou falar em público, ter voz, desinibição ou ainda como perder preconceitos. Vou aproveitar para deixar aqui um apelo: estou à procura de entidades privadas que queiram, como mecenas, financiar este projecto. Já levei a Arca dos Contos a infantários, aos quatro anos do ensino básico, ao quinto e sexto anos e já o fiz com velhotes e com os meus doentes mentais. Dá para tudo e todos.

Até dá para reforçar equipas nas empresas?
Precisamente. Desde o início, percebi que tinha a capacidade de pôr as pessoas a fazerem por elas próprias. Os professores e pais dizem-me que é mais interessante do que as peças de teatro que, às vezes, levamos à escola. Este projecto é diferente porque põe os miúdos a fazer, a partilhar e obriga-os a vencer medos. No início, eles não se apercebem que vão ter de apresentar publicamente no final de uma manhã. Começam a brincar um jogo com cartas e há personagens e adjectivos e verbos, mas com essas informações contamos uma história e ainda há a vertente onde são eles que escrevem. Quando, há dois anos, e, novamente, no ano passado, concorremos com este projecto a apoios, foi com o aval da Associação de Pais do Agrupamento de Escolas da Batalha, que manifestou interesse, a bom tempo o município acolheu esta proposta. Quando reuni com eles, perceberam que era uma ideia pioneira, irreverente, original e adquiriram as oficinas. A minha proposta era começar no próximo ano lectivo, mas perguntaram se tínhamos agenda para arrancar já este ano, porque, devido à pandemia, os miúdos não puderam ir para lado algum, nem fizeram visitas de estudo. Não conseguíamos fazer para os quatro anos do ensino básico, mas com os finalistas era possível. Corri as nove escolas do ensino básico do município e foi incrível porque fui a algumas que não conhecia. Quis muito começar na Batalha. Desde o princípio que tinha o objectivo de arrancar ali. Agora, a Kind of Black Box segue pelo Mundo fora. Acho que tenho a obrigação de devolver algo à escola dos Casais dos Ledos, onde aprendi a ler e escrever. É uma actividade que fica na memória. Um dia, uma carrinha entrou na escola e transformou-se num palco cheio de cenários, adereços e figurinos, para eles poderem representar... é importante quando, eles, hoje, passam o dia sentados no sofá, ou a uma mesa a receber estímulos de um pequeno ecrã.

Toca aí a teoria do ecrã, de que fala Gilles Lipovetsky...
Isto afecta eventualmente o sistema neurológico e a capacidade de apreensão de conhecimentos. Ali, dentro de uma carrinha eles vivem... os que não querem representar não são obrigados. Não quero traumatizar ninguém. Mas não os vou excluir da actividade. Há mais coisas no teatro que podem fazer, como ajudar a mexer no cenário, fazer a sonoplastia ou, lá atrás, a ajudar os outros a vestirem-se. Depois ficam sempre com a vontade de fazer, quando percebem que os outros se estão a divertir. São três horas e eles nem têm tempo de perceber o que vai acontecer. É incrível! Quando dão por ela, já estão no palco. Fazemos um registo em vídeo que, depois, é enviado para a escola. Este ano fizemos mais de 20 peças, com dez minutos cada. Em sete dias de actividade, atingimos 130 alunos directamente e 500 indirectamente, além dos professores e dos pais que, em casa, receberam o vídeo. Sempre quis que isto fosse uma coisa sofisticada. Não queria uma carripana que se abrisse e tivesse um ar freak, com uns paninhos pendurados. Não queria, porque fazer teatro ou cultura, é tão prestigiante quanto operar uma pessoa num bloco operatório. Não se pode olhar para a cultura como uma coisa pobre. Tem de ser olhada com o mesmo rigor com que se olha para a medicina ou como, na região, para a ciência e tecnologia. Gostava que as pessoas percebessem que a cultura é uma coisa tão ou mais digna quanto jogar futebol, apesar de não estarmos a falar dos milhões do desporto. É importante que se olhe para a cultura e para o teatro com essa dignidade. Da mesma forma, é importante que os municípios tenham auditórios em condições para receber grandes espectáculos. Tenho pena que a Batalha não tenha um grande auditório para trazer as peças de grandes teatros. Farto-me de insistir, por exemplo, que o auditório do mosteiro vá para obras, porque é um bom espaço, mas foi construído nos anos 60 e serve apenas para conferências... é o terceiro monumento mais visitado do País e o valor que entra em bilheteira vai para a Direcção-Geral do Património Cultural e depois não é redistribuído de acordo com o que factura. É pena que não tenha um auditório preparado para receber bons espectáculos, seja para os turistas, seja para a população da vila. É de louvar o Artes à Vila, um festival premiado internacionalmente. O Eduardo Jordão tem trazido grandes nomes da música e, muito discretamente e se calhar até sem a atenção devida do município, tem levado o nome da Batalha através da música a todo o lado. A reboque dos projectos profissionais, vêm as associações e vêm os grupos amadores. Não é o contrário. Não quero falar mal dos amadores porque aprecio muito o seu trabalho, mas não podemos comparar um médico a uma pessoa que vai fazer voluntariado ao hospital, apesar de ambos serem de extrema importância.

Gostava que as pessoas percebessem que a cultura é uma coisa tão digna quanto jogar futebol, apesar de não estarmos a falar dos milhões do desporto
Tobias Monteiro

Como conseguiram então o financiamento para a Arca?
Graças à pandemia. Os políticos tiveram de rever e repensar as estratégias na cultura. Ficou mais do que evidente o que se passou no último ano. E não só na cultura, nas outras áreas também. Viu-se que os trabalhadores deste sector, não têm as condições mínimas de trabalho. Não há contratos de trabalho de jeito, não há condições que assegurem um nível de vida estável... e não estamos a falar apenas de actores ou de bailarinos, mas de muitos outros, como os técnicos e restante pessoal. Estão sempre a dizer que somos "subsídio-dependentes". Não, não somos. Se assim fosse, também a saúde o seria. Muitos defendem um Serviço Nacional de Cultura e não é uma ideia descabida, porque, de facto, se viu que, sem cultura, deixa de haver memória, deixa de haver pensamento colectivo e é urgente que se olhe para a cultura como uma prioridade séria. Com a pandemia, a ministra da Cultura ao ver a situação em que ficámos, reviu a estratégia do ministério e da Direcção-Geral das Artes e decidiu apoiar todas as candidaturas que, em concurso, tinham sido consideradas elegíveis. Foi aí que, finalmente, a Arca conseguiu ser repescada. Dotaram a nossa associação com uma outra capacidade que, se calhar, até nos vai evitar concorrer tantas vezes ou ser tão "subsídio-dependentes", como nos gostam de chamar! Temos uma nova forma de criar um modelo de negócio. A carrinha pode estar num festival de cinema a funcionar como centro de produção e, em simultâneo, servir de palco para os cineastas debaterem, conversarem e até darem autógrafos. Apesar de estarmos sediados em Lisboa, eu sou desta região, e tenho feito esforços no sentido de, se possível, começar aqui projectos. A situação está a mudar, mas boa parte dos municípios só adquire coisas já feitas... em pacotes. Esquecem que têm orçamento para criar aqui, para investir, para convidarem pessoas para criar aqui. E atenção que convém apoiar o associativismo e as companhias amadoras, mas tem de haver uma diferença entre o que é profissional e o que não o é. No profissional, temos pessoas que investiram em formação, que fazem, que se esforçam e que vivem disto. Não trabalham em part-time... Na região, vemos muito o "piscar o olho ao eleitorado e apoiar toda a gente". É preciso cuidado nas vereações e perceber a diferença, porque, senão, são todos tratados por igual e tem de haver exigência e rigor na qualidade. Não se pode apoiar todos, de forma igual, só porque tem de ser e se fica bem visto.

Foto: Kind of Black Box

Isso não é promover a "subsídio-dependência"?
Exactamente. E isso, nos últimos anos, tem-se visto demasiado. Por exemplo, em Leiria, que quer ser Capital Europeia da Cultura - e acho muito bem -, de repente, houve um investimento rápido, da parte da comunidade intermunicipal, para se dar a ideia de que temos muita cultura há muito tempo e que merecemos ter a capital. Ainda bem que isso aconteceu, antes tarde do que nunca. Mas tem de ser ter cuidado com a forma como se investe. Tem de haver critérios de qualidade e rigor, tem de haver diferenças e tem de se ver o que é profissional e o que não é... com todo o respeito pelos amadores e até com o teatro comunitário, que está muito em voga. Quem está nos pelouros, tem de conhecer bem o meio, de ter bom gosto e de perceber no que está a investir. Não vamos investir numa coisa e trazer um produto só para que funcione e dê que falar agora. Criar públicos e hábitos de consumo de cultura é algo que se tem de fazer a longo prazo.

O que é para si um Serviço Nacional de Cultura?
É dar-se também prioridade à cultura, é o usufruto de bens culturais com regularidade e outros preços. É haver condições dignas e dignificantes de trabalho na cultura, porque apesar de a ministra estar a tentar criar o estatuto do trabalhador do espectáculo, na verdade, o que estão a fazer é, além de outras coisas, legalizar os recibos verdes. Dever-se-ia obrigar as instituições a terem contratos de trabalho para que as pessoas tenham condições, para que sejam bem remuneradas, para que não haja aproveitamento, para que não se pague mal e por baixo da mesa. É acabar com os falsos recibos verdes e aumentar a dotação do Orçamento do Estado. E isso era para ontem, porque agora, de repente, com tanta desgraça, até se conseguiu ir buscar dinheiro para as candidaturas elegíveis, coisa que antes não acontecia. Por que as consideram elegíveis? Isso cria conflito e discórdia dentro da comunidade. "Porque é que ele recebeu e eu não, quando somos ambos elegíveis?" Um Serviço Nacional de Cultura deveria facilitar o mecenato, dando benesses fiscais, a empresas que, de facto, queiram ser mecenas de projectos ou de estruturas. É dar a possibilidade às pessoas de usufruírem dos bens culturais. A cultura não pode estar sempre asfixiada por falta de verba!

Foto: Kind of Black Box

O sector cultural e artístico traz um grande contributo ao PIB. Mas isso passa despercebido na hora de apostar em sectores estratégicos.
Há muitos municípios que investiram num festival pequenino, como o Bons Sons, de Cem Soldos, uma aldeia no meio da serra em Tomar, que trouxe uma dimensão enorme à aldeia e projecção ao município. Na região, posso dar exemplos, como A Porta, em Leiria. A cidade não tinha nada e, de repente, tem tudo. Pela negativa, há lá coisas que uma pessoa vai ver e.... Passou a ser Cidade da Música da Unesco e deveria ter um investimento sério e criterioso de qualidade. Dever-se-ia perceber em que música é que se investe. Ou em que exposições se investe. Não é só porque a fotógrafa X é da região, e embora a qualidade do trabalho não seja assim tão boa, que se vai dar visibilidade. Sei que isto é polémico, mas tem de se ter cuidado e não se deve apoiar só “porque sim, porque é da região ou porque vai dar votos”. Para ser apoiado, precisa de ter qualidade. Leiria quer ser capital da cultura e agora há cultura por todo o lado... mas é preciso oferecer qualidade às pessoas. Vamos educar o público ou vamos criar novos públicos, como agora dizem, sendo exigentes com a qualidade. Muito se tem feito e isso é louvável. Leiria mudou muito de há uns anos para cá. A perspectiva da capital da cultura trouxe à cidade um foco que, antes, jamais tinha tido. Era uma coisa esporádica. Preferiram dar atenção à construção de um estádio e foi o que foi e o que se sabe. É a terra de Dom Dinis, que foi o grande impulsionador da cultura e da língua portuguesas! Tivemos o Eça de Queirós aqui e vai ser filmado agora O Crime do Padre Amaro com um investimento substancial da Câmara Municipal de Leiria. É isto que os municípios deveriam fazer com mais regularidade: investir em projectos que possam trazer realizadores ou encenadores, aproveitar os artistas locais e fundir tudo numa sinergia positiva. Chega de comprar só coisas já feitas. Inscrevam no mapa a cidade, porque criou, porque encenou, porque filmou, porque cantou, porque musicou.... É a cultura e a memória do povo que nos distingue de outras culturas, que permite criar pensamento livre e evitar que haja avanços dos extremismos, por ignorância, porque as pessoas estão todas a pensar, em carneirada, da mesma maneira.

Perfil
O senhor Arca dos Contos

Tobias Monteiro, 41 anos, é uma cara conhecida das novelas, do teatro e do cinema.

É possível que os seus filhos lhe reconheçam a voz de filmes dobrados como Boss Baby ou Alice no País das Maravilhas. Há duas semanas, o actor natural da Batalha, iniciou mais um projecto que, há anos, perseguia: a Arca dos Contos em Movimento, uma oficina de teatro num teatro móvel voltado para os mais novos.

Nele, vai às escolas, ensina a escrever peças e a encená-las.

Tem também trabalhado muito para que o público conheça algumas das histórias que fazem a História da região, levando-as ao palco, através de textos de alguns dos melhores, embora esquecidos, autores nacionais.

A sua aposta na região já não é de agora.
Quando iniciei, na Batalha, em 2014, A Abóbada Não Caiu, a Abóbada Não Cairá, sobre o mestre Afonso Domingues, com o Fernando Luís e a Ana Bustorff, a minha ideia era apresentar uma trilogia. Fiz a segunda parte, Dinis e Isabel, com a Núria Mencia e com o Filipe Duarte, que, infelizmente, já não está entre nós, apresentámos em Leiria e em Coimbra. Agora, finalmente, irei acabar em Alcobaça, entre 5 e 14 de Novembro, integrado no festival Books & Movies. Será Pedro, o Cru, também do autor António Patrício, que tem várias obras onde adapta algumas lendas, tendo escrito estas três que estão relacionadas com a região. Faço questão de trazer actores de qualidade, que o público local, se calhar não tem facilidade de ver ao vivo. O facto de a Núria, por exemplo, enquanto rainha santa Isabel, falar em castelhano, imprimiu uma mística que quero trazer a estes textos apresentados nos sítios onde as histórias terão acontecido. O público, na Batalha, foi conhecer a história da abóbada, debaixo dessa mesma abóbada. Isso deu-lhes a oportunidade de observar com outros olhos aquele espaço. Fiz o mesmo em Leiria e em Coimbra. Agora, será Pedro sem a sua Inês de Castro, porque a história conta apenas a sua trasladação para Alcobaça e coroação.

Foto: Nuno Brites/InTouch Stories

É a lenda após a lenda.
O Patrício fazia muito isso. Não contava as lendas como elas eram. Preferia desconstruí-las. Em Dinis e Isabel, faz com que ela morra antes dele, quando, na realidade, foi ao contrário. Ela morre por falta de amor, porque Dinis não pode desejar e amar uma santa, porque, se o fizer, terá de a disputar com Deus. Já Pedro, o Cru, é um homem que não dorme, enquanto não conseguir concretizar o seu objectivo de coroar Inês que amava e que mandaram matar. Foi considerado um rei justo, mas há ali crueldade e frieza contra quem matou o seu amor. Há ali, um lado de justiça muito forte. O Pedro será interpretado pelo Miguel Borges que faz muitas séries, cinema e teatro. É um outsider e é um actor que tem "abismo". Há os que são bons, mas apenas cumprem, não têm chama... Ele tem algo mais. Em palco, quando há mais alguma coisa a acontecer além da presença dos actores, é porque há ali uma aura e talento que só os grandes têm. Há uma energia, uma mística que me agrada. Preciso de um actor com uma espécie de loucura, para fazer uma personagem num estado quase febril de desejo de concretizar aquela maluqueira de desenterrar uma mulher e transportá-la para um monumento e coroá-la rainha. Esta é a primeira peça da trilogia que terá investimento público da DGArtes. As outras só as consegui fazer por carolice, insistência e algum apoio dos municípios. Para o ano, queria muito apresentar este espectáculo na Quinta das Lágrimas, em Coimbra. Com Pedro, o Cru, vou fechar a trilogia dedicada ao Patrício. Descobri o primeiro texto, que nem sequer tinha sido publicado, sobre a Batalha e decidi mostrá-lo às pessoas da região. É urgente que os municípios percebam que podem chamar encenadores conhecidos para vir encenar aqui e trazerem actores e chamar amadores e associações para trabalharem com eles.

Porque estamos a falar da identidade da região e de um povo, é importante que haja esse cuidado “mais profissional”?
Sim. Além disso, houve um tempo de trauma com estas lendas e da sua relação com o Estado Novo. Temos de pôr isso para trás das costas. Precisamos de ultrapassar o trauma de Salazar e o pensamento do Estado Novo se terem apropriado deste património, transformando tudo o que é patriótico, para ser usado como bandeira da ditadura. É importante que se comece a desbloquear... até tenho receio de falar nestas coisas, porque, hoje, anda muita gente sensível com estas temáticas - quando se fala de racismo, de feminismo e por aí fora. Estamos a entrar numa zona e num território muito perigosos. Acho muito bem que se reivindique direitos e que se lute por eles, mas também é preciso cuidado. Esta coisa de destruir as estátuas.... A história aconteceu e não se apaga com uma borracha. Tem de se olhar para ela e assumi-la para que não volte a acontecer. Não é por Alexandre Herculano ter escrito as Lendas e Narrativas, depois apropriadas por Salazar, que enaltecia o seu regime com os mosteiros da Batalha e de Alcobaça, que temos de apagar a história. A região viveu durante muitos anos o trauma da relação do mosteiro com o pensamento fascista. Está na hora de ultrapassar isto. Temos aqui um monumento lindo de morrer! Temos de olhar directamente para coisas negativas como a escravatura e entender que "fomos horríveis". Fomos sim! Mas não podemos apagar o que aconteceu. Temos de tentar perceber de que forma conseguimos abordar, olhar, trazer novos olhares e fazer tudo para que não se repita. Estamos a ver a Europa a caminhar para um território um bocadinho estranho, no que toca a esta coisa de separar e de fronteiras. Cabe às entidades e aos fazedores de política e de cultura pôr as pessoas a pensar. Cabe-nos, agentes culturais, oferecer aos espectadores coisas que lhes liberte o pensamento.

Foto: Nuno Brites/InTouch Stories

Até em Portugal, há uma nova força partidária apostada em dividir o povo em bons e maus...
As entidades não se sentam à mesa a pensar na educação. A desinformação nasce de uma má educação. Se reparar no que se escreve nas caixas de comentários nas redes sociais, perceberá que há iliteracia e má compreensão de leitura de texto em português. A má compreensão de uma frase mal escrita gera polémica. Temos de parar, pensar e perceber que há algo que está a falhar, e a desinformação passa por aí. Temos muitas certezas, porque até lemos uma coisas e esquecemos que somos manipulados. Veja-se o que aconteceu nas eleições no Brasil e nos Estados Unidos. Agora, à distância, percebemos que foi através destes movimentos e novas estratégias que aqui chegámos. Estes extremismos, à direita e à esquerda, que se estão a ver na Europa também começaram a ganhar terreno deste modo. Todos os extremos são perigosíssimos! Aproveitam a ignorância. Por isso é que é importante investir na cultura, porque ela traz pensamento, mostra as coisas que aconteceram e mete as pessoas a reflectir. Quando esta entrevista sair, vou estar em palco, a fazer O Lugre, encenado pela Maria João Luís, no Seixal, a partir do original de Bernardo Santareno, que se passa no tempo da ditadura. O público desconhece a crueldade que era a pesca do bacalhau, nos mares gelados da Terra Nova. Quem não queria ir à guerra tinha de ir à pesca durante três temporadas e eram viagens que duravam seis ou sete meses. Por aquilo que li, a pesca do bacalhau podia ser ainda pior do que a guerra. Estar exposto, dentro de um dóri, um barquinho onde só cabia um homem a pescar à linha, a temperaturas negativas, no meio do mar, com tempestades.... Saíam de manhã e passavam o dia isolados, sem saberem de nada, sem saberem uns dos outros. Estamos a falar de homens e de rapazitos que perdiam a orientação e morriam. Foi numa dessas embarcações que o Bernardo Santareno foi como médico, porque nessa frota havia sempre um navio hospital. Era uma vida muito dura, comiam mal e viviam em condições terríveis, sujeitos a todo o tipo de doenças. A peça vai estar em cena nos dias 22, 23, 24, 29, 30 e 31 de Julho. E, depois, poderá ser apresentada noutros pontos do País. Gostava de ir a Leiria com ela, até por causa da proximidade com a Nazaré. Muitos dos que participavam na pesca do bacalhau eram de lá e de outras localidades piscatórias da região. Gosto muito de Santareno, da mesma forma de que gosto do Patrício. São autores que se foram deixando de fazer, até com algum preconceito da comunidade artística, porque eles têm um lado muito telúrico que as vertentes mais pseudo-modernas refutam. É uma pena. É a nossa dramaturgia e temos de a fazer. Em Outubro, ainda vou estrear uma adaptação de um livro de Ana Maria Magalhães e de Isabel Alçada, chamado Quem é Esta Gente nos Painéis de São Vicente. É um espectáculo tecnológico e de videomapping. Sou o único actor e interajo com os painéis, que falam sobre Nuno Gonçalves o pintor dos painéis e sobre quem são as pessoas que lhe serviram de modelos. Irá estrear no Museu de Arte Antiga e depois, deverá andar a circular por aí. É da Foco Lunar, com encenação do Vasco Letria.

Foto: Alípio Padilha

Fez parte do júri no Leiria Film Fest (LFF). Que análise faz a este festival de cinema?
Acho-o incrível. Conheci o Bruno Carnide e a Cátia Biscaia, os organizadores, num ano onde participei no festival com a direcção de actores de uma curta, que estava a concurso. Percebi a qualidade de ambos. Não só na selecção dos filmes, como do seu trabalho. Tenho pena que a região não ponha mais os olhos neles. O Bruno foi nomeado para os Prémios Sophia que são só os prémios da Academia Portuguesa de Cinema Portuguesa... temos por cá pessoas com muita qualidade. O LFF tem muito pouco apoio da Câmara de Leiria e a atenção que lhe é dada é a custo. Como costumo colaborar com o Motel X Festival de Cinema de Terror, na parte de produção na gestão dos convidados. O Bruno e a Cátia perceberam a minha dinâmica e comecei a dar-lhes umas dicas, e eles, em 2020, convidaram-me para jurado. Mas foi um ano de pandemia e foi tudo online. Em 2021, voltaram a convidar exactamente o mesmo júri. Não faço parte da organização do LFF, no entanto, apercebo-me das dificuldades que têm e da dimensão que o festival já ganhou, inclusive, em Lisboa. Até internacionalmente, está a ganhar um nome muito importante e a quantidade de filmes estrangeiros que se submetem a concurso é incrível. Este recado vai para a região de Leiria: deve pôr-se mais atenção neste festival. Até porque Leiria tem o Museu da Imagem em Movimento e investiu nele muito dinheiro. Deve-se, então, alargar o investimento ou o olhar que se dá ao cinema e à imagem. Tendo um festival com esta qualidade e duas pessoas talentosas - a Cátia é uma cineasta mulher, tema que está na berra, que tem uma curta-metragem escolhida para o seu quarto festival em Espanha... quando chego a Lisboa, toda a gente me pergunta sobre o Leiria Film Fest! Há pouco, disse que os vereadores e as pessoas que estão a gerir, também têm de ter um bocadinho de exigência rigor e qualidade. Não podem chamar só os que existem só porque sim, só porque são os que há. Trabalhei, por exemplo, com o Leirena, porque a companhia tem qualidade, tal como trabalharei, sempre que puder com o Bruno e com a Cátia, porque gosto de aproveitar a mão-de-obra de qualidade da região. Em Alcobaça, quero trabalhar com a SA Marionetas... ou seja, é este tipo de sinergias que cabe aos municípios também fazer. Nesta edição do LFF, esteve o Welket Bungué, que esteve no Festival de Cinema de Berlim, na edição do ano passado e que é a nova sensação portuguesa lá fora, e, tal como ele, todos os convidados ficam fascinados pela maneira como são recebidos pelo Bruno e pela Cátia. Quando me propuseram votar nos filmes que tinham escolhido para a edição deste ano, disse-lhes que estavam a ser cruéis porque todos os filmes a concurso são bons. Todos deveriam ganhar prémio. “Pois, mas não temos orçamento para um festival e para uma competição maior", responderam-me. Este ano, o município da Batalha fez-lhes a proposta de começar um festival de cinema inclusivo no concelho. É uma aposta inteligente do município, que tem o Museu da Comunidade Concelhia da Batalha, um equipamento inclusivo. O Batalha Inclusive Film Fest vai ter a primeira edição este ano, a 4 de Setembro, se não me engano. Vai ser um início que, provavelmente, para já, não atingirá o objectivo da inclusão a 100%, mas está-se a tentar um caminho. Irá abordar temáticas relativas à inclusão, a própria exibição de filmes terá isso em conta, mas, como é lógico, estará aberto a sugestões de melhoria, vindas da comunidade. Estou a falar deste tema porque fui convidado para ser padrinho do festival e sê-lo-ei com todo o prazer sempre que a Batalha assim me convidar, afinal de contas é a terra onde nasci e onde tenho a minha família.

“Um Serviço Nacional de Cultura deveria facilitar o mecenato, dando benesses fiscais, a empresas que, de facto, queiram ser mecenas de projectos ou de estruturas
Tobias Monteiro

E também trabalha na área da inclusão.
Dirijo o grupo teatro de doentes mentais do Centro de Apoio Social do Pisão de Cascais, os “Fora da Caixa”, com quem vou ter um projecto profissional para o ano. Vou fazer As Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira, onde tenciono cruzar actores profissionais nos papéis principais, com sete elementos deste grupo. Deveremos ser profissionais, mas não é isso que nos impede de incluir amadores, a comunidade ou seja, quem for. Na nossa rotina de trabalho, fazemos exercícios com as mesmas exigências e, sobretudo, dou-lhes afecto e tento que tenham maior autoestima. Alguns nasceram já com uma doença mental e, toda a vida, foram olhados de lado e postos de parte até pelas famílias. Só um bocadinho de afecto muda-lhes logo o comportamento e dá-lhes bem-estar. Dá-me um prazer especial saber que estou a provocar algum efeito naquelas pessoas.

Foto: Nuno Brites/InTouch Stories

Tem feito dobragens nalguns dos filmes de maior sucesso entre o público juvenil, dos últimos anos. Costuma ter alguns cuidados especiais nesse trabalho? Há espaço para criar?
Há algum. É um trabalho complexo. Primeiro, tem-se de ser tão bom a representar dessa maneira, como em palco. Não é preciso seguir à risca o texto original, mas quando se trata de grandes produções da Disney ou da Pixar, o desenho é feito para uma determinada voz e o espaço para a criação não é muito. No entanto, é sempre preciso criar um pouco, pois, adaptar para a língua portuguesa obriga a isso. Por acaso, estou agora num projecto pioneiro, com vários episódios muito curtinhos, de uma personagem que visita obras de arte que estão em museus e explica às crianças o que é esta ou aquela obra de arte. Fiz o episódio-piloto sobre o painel do Almada Negreiros, onde está retratado Fernando Pessoa. Aí, gravo primeiro a voz e só depois é feito o boneco e, nessa situação, tenho todo o espaço para criar. No caso de imagem real, a dobragem é muito mais difícil de fazer. Na Alice no País das Maravilhas, onde faço a voz do Johnny Depp que contracena com bonecos, choca mais vê-lo a falar em português do que ver os bonecos fazê-lo. Porém, também não temos o intuito de fazer a voz parecida. Isso seria imitação. Queremos uma interpretação o mais aproximada possível, que torne verosímil aquilo e que não fique uma coisa com alguém com uma vozinha fininha, que não bate com a imagem.

Como reagem os mais novos quando aparece na sua carrinha-arca e eles se apercebem que é a voz de alguns dos heróis que vão ver ao cinema?
Geralmente não digo nada no início da actividade. Só no fim. Fazê-lo logo, desmistifica um pouco a imagem que eles têm do desenho animado. Se lhes digo que faço a voz de algumas personagens do Boss Baby e de outros personagens conhecidos, eles olham para mim, um gajo com olheiras e de barba e... é pena estar a desmistificar que o "ursinho querido" é aquele senhor de barbas, que está ali! É mais giro, quando crescem e se interessam pela parte técnica.