Em poucas semanas, muitas empresas reconverteram a sua produção e passaram a fabricar artigos que o País importava, nomeadamente da China. Esta pandemia poderá, ou deverá, servir para uma reflexão em torno da dependência que temos de alguns países?
Sim. O problema é que não é uma reflexão que Leiria possa fazer sozinha. Este é um problema europeu, e mundial também. Seria bom que olhássemos para esta situação e víssemos a dependência que temos de alguns mercados, nomeadamente do chinês, num conjunto de coisas que, pelos vistos, até somos capazes de fazer. O prejuízo não é só dependermos, é também um prejuízo ambiental, porque transportamos tudo de avião e de barco da China. Produtos que, por outro lado, são por vezes produzidos em condições que cá não aceitaríamos. Esta tem de ser uma reflexão europeia.
Pode ser a ocasião para as grandes empresas europeias, que nas últimas décadas passaram a produzir na China, equacionarem voltar a fabricar dentro de portas?
Isso devia ser pensado, claro. Gostaria que pudéssemos olhar mais para ao pé da nossa porta e estimular mais as nossas indústrias. Mas a verdade é que vivemos num mundo globalizado e isso vai ser muito difícil de fazer. Há dias uma pessoa com quem conversava disse-me algumas coisas interessantes. Uma delas é que durante muito tempo as grandes multinacionais se abriram à China, deslocalizaram a sua produção para este país, porque queriam ter mais lucros: fabricavam mais barato e vendiam aos mesmos preços. O problema é que a situação se inverteu e agora são elas que pedem aos governos alguma protecção, porque os chineses aprenderam a fazer e agora fazem-lhes concorrência em todo o lado. Infelizmente estas empresas têm poder de mais, mas agora talvez possam influenciar alguma coisa no sentido de não se depender tanto da China. Só que há outra questão. Não se pode falar da Europa sem falar da Alemanha, e este país exporta uma quantidade exorbitante de maquinaria para a China. Portanto, não vai querer pôr isso em causa devido a qualquer tentativa de hostilizar a China. O equilíbrio é muito difícil. Há uma alternativa, menos política e menos económica, que é a cívica. Se todos nós fizermos o esforço [de comprar produtos nacionais] ajudaremos a reduzir essa dependência. Claro que não é apenas com isto que conseguiremos resolver o problema, mas é um passo e pode ser uma [forma de] pressão. Os partidos políticos, quando querem ir para o governo, estão atentos àquilo que o povo, que vota, faz. Se houver um movimento num determinado sentido, eles vão também nesse sentido.
As medidas que o Governo português disponibilizou são suficientes e adequadas às necessidades que as empresas enfrentam neste momento?
Todas as medidas que o governo anunciou me parecem boas e adequadas. Talvez não suficientes. Mas sabemos que não tem de anunciar tudo de uma vez. Os valores anunciados têm vindo a crescer, e terão de crescer ainda mais. O problema das medidas é a sua complexidade. Não há ninguém que se entenda. Não faz sentido que as regras para não pagar o IVA sejam completamente diferentes das regras para não pagar a Segurança Social. É o mesmo Estado, por que é que as regras são diferentes? As medidas são complexas, difíceis de usar. Veja-se o caso das linhas de crédito. Demorarão mais de um mês a chegar às empresas. Se uma empresa tiver um problema grave e não conseguir pagar a Segurança Social, pode daqui a um mês querer accionar o lay-off e já não pode, porque vai ter essa dívida. A medida que o governo criou para se poder pagar a Segurança Social, e outras coisas, só disponibiliza o dinheiro daqui a mês e meio. Está tudo muito burocratizado.
Neste momento a situação social e económica é difícil, mas pode ser ainda pior daqui a alguns meses…
Agora temos um problema de saúde pública que tem de ser resolvido. Estamos todos dispostos a fazer um conjunto de sacrifícios. E o governo está a apoiar as empresas por causa disso. O problema é que, do ponto de vista económico, o bater no fundo não é agora, vai ser daqui a seis meses. Nessa altura, as empresas já estão todas a trabalhar, mas a 50%, porque a retoma vai ser muito lenta. E daqui a seis meses, as empresas vão ter de pagar todos os seus impostos, vão ter de pagar os impostos que o Estado permitiu que não pagassem agora, e também os empréstimos que estão a fazer para pagar salários. E daqui a seis meses, imagino que o Governo diga duas coisas. Uma é que já não estamos em pandemia e não tem de ajudar. Outra é que, mesmo que até reconheça que seria preciso ajudar, já gastou o dinheiro todo. Agora as empresas estão em lay-off, não despediram. A situação é grave, sim, mas está controlada. Daqui a seis meses não vai haver trabalho e as empresas vão começar a despedir. O verdadeiro problema económico vai ser daqui a seis a oito meses.
A fraca capitalização das empresas é um problema amiúde referido e que agora assume especial importância. Mas mesmo as empresas com reservas não conseguirão aguentar muito tempo…
Não. As que não têm reservas nenhumas já não pagaram ordenados em Março. As que têm, aguentam dois ou três meses. As empresas têm de fazer investimentos. Excesso de capitalização também é má gestão. Uma empresa excessivamente capitalizada não consegue distribuir aos accionistas lucros em função desse capital. Outro problema é que não houve entre as duas crises tempo suficiente para as empresas se capitalizarem.
Fecho de empresas e despedimentos serão inevitáveis?
Sim. É impossível as empresas não despedirem. Se há quem diga que o Produto Interno Bruto vai cair 5%... Veja-se o que aconteceu na crise do subprime. A quanto chegou o desemprego? Se o PIB descer agora um valor parecido, o desemprego vai ser parecido. Infelizmente, algumas empresas não vão sequer reabrir. Outras, no prazo de oito meses, vão ter de dispensar pessoas. Não tenho a mais pequena dúvida. Nem eu, nem ninguém com bom senso. Os governos às vezes pensam uma coisa e têm de dizer outra. Percebo. Faz parte do jogo político. Mas não me parece viável [não haver despedimentos]. O choque foi brutal, e de repente, as empresas estão a aguentar como podem, com as ajudas que existem, mas a retoma vai ser lenta.
Dos cerca de 6% apontados pelo Banco de Portugal aos 20% da Universidade Católica, são várias as previsões para a queda do PIB português. Será uma recessão mais grave do que a de há dez anos?
Sim. Começa logo por ser transversal, todo o Mundo estará na mesma situação. É dramático. Não tenho dúvidas que será mais profunda e irá durar mais tempo.
Depois da pandemia sanitária, haverá uma pandemia económica?
É certo. Vamos ter uma recessão económica durante muito mais tempo do que pensávamos, não tenho dúvidas. Vão ser precisos estímulos à economia a um nível a que não estamos habituados. Há um conjunto de sectores chave que são alavancadores de toda uma cadeia de fornecimento e terá de ser feita alguma coisa por eles. E isso tem de ser feito a nível europeu. Aumentar o consumo interno é um paliativo, é só para se poder começar a fazer alguma coisa, mas não resolve.
A maior ou menor rapidez da retoma dependerá de que factores, além do tempo que levar a controlar a pandemia?
Na Nerlei temos vindo a pensar nisso. Como região, unidos, temos que começar já a preparar o pós-Covid e, se possível, dar o exemplo, inovar nas medidas e acelerar a retoma. O esforço do Governo de manter algumas empresas a funcionar é meritório e é a base para a retoma ser melhor. No meio da tragédia sanitária, mas também social que vivemos, e da económica que ainda está para chegar, temos que valorizar as muitas empresas que não baixaram os braços e estão a fazer tudo o que podem para se manter abertas. Por outro lado, quanto mais empresas abrirem rapidamente, em segurança, naturalmente, melhor. Se calhar vão ser precisas mais medidas de protecção, mais testes, testes de imunidade. É uma questão de confiança. Temos de confiar no sistema de saúde, temos de confiar que as empresas abertas estão a cumprir as regras. A economia mundial vai levar tempo a recuperar e no início vamos ter de contar sobretudo com o consumo interno. Tudo o que pudermos fazer para ajudar as empresas vai contribuir para sairmos mais rapidamente deste buraco onde estamos. Será mais rápido colocarmos as empresas a produzir para se consumir internamente do que aumentar rapidamente as exportações.
Do escutismo às empresas e ao associativismo
António Poças, 60 anos, é engenheiro electrotécnico. Desde jovem que integrou o movimento escutista, do qual se desligou apenas em 2003. A nível profissional, foi director de departamento da Fábrica Leiriense de Plásticos e presidente do Conselho de Administração da Leirisic, empresa de informática que viria a dar origem à inCentea. Foi no final de 2000, através de uma operação de Management BuyOut, que um conjunto de colaboradores, entre eles António Poças, adquiriu o controlo da Leirisic e começou a definir uma estratégia de crescimento baseada numa política de parcerias. Hoje, o Grupo inCentea, a que preside desde 2010, conta com empresas em Portugal e em vários países (como Angola, Cabo Verde, Moçambique) e emprega cerca de 300 pessoas. António Poças é presidente da Associação Empresarial da Região de Leiria (Nerlei) desde 2018 (antes tinha sido presidente da mesa da Assembleia Geral), ano em que passou a ser também vice- -presidente da Direcção e vogal da Comissão Executiva da AIP. Foi entre 2018 e 2020 vice-presidente do Conselho Geral da CIP, sendo actualmente vogal da Direcção desta confederação empresarial. Do seu vasto currículo associativo, contam-se, entre outros, cargos nas incubadoras IDD e IPN e na associação Acilis. É membro do Conselho Geral e do Conselho para a Avaliação e Qualidade do Politécnico de Leiria e membro do Conselho Geral da Cotec. Entre 2006 e 2014 foi juiz social no Tribunal de Família e Menores de Leiria.