Entrevista

Ricardo Vieira, docente do ensino superior: “Temos de substituir ‘tolerância’, que faz parte do racismo 'português suave', pela palavra 'respeito'”

23 out 2022 21:10

O académico acredita que Leiria é o único politécnico nacional com argumentos para ser universidade e visiona um futuro pela mediação e pedagogia sociais

Ricardo Vieira
Ricardo Graça
Jacinto Silva Duro

A Escola Superior de Educação de Leiria recebe, nos dias 20 e 21, a Conferência de Mediação Intercultural e Intervenção Social, este ano realizada conjuntamente com a Sociedade Ibero-americana de Pedagogia Social (SIPS). Quais serão os temas abordados?
É a 10.ª conferência e realiza-se sob o lema Pedagogia Social e Mediação Intercultural: Teoria e Prática na Intervenção Socioeducativa. No ano passado, o tema foi a Covid-19, para lá da doença, as transformações familiares, individuais e comunitárias que causou. Dessa conferência, resultou o livro Vivência(s), Convivência(s), e Sobrevivência(s) em tempos de Covid-19, com as conclusões e as comunicações, e cujo primeiro tema é a saúde mental, mas também se abordam outros assuntos, como o futuro do SNS. Este ano, a imagem da 10.ª conferência está ligada a um dos nossos mestrados, que é único no País e é dos mais procurados no Instituto Politécnico de Leiria, o de Mediação Intercultural e Intervenção Social. Ele marca a mudança do modo de pensar a intervenção, que deve ser dialogante, quer seja no trabalho com a criança, com o idoso, com grupos e comunidades. Nunca pode ser a ideia objectivista de trabalhar o outro, como se o outro não tivesse cabeça para pensar, como se outro não fosse um sujeito com o seu próprio projecto. O interventor social, seja ele investigador, sociólogo, antropólogo, jornalista, empresário, patrão, seja que profissional for, tem de usar o primeiro pilar da mediação e da pedagogia social que é a escuta activa. Se não escutarmos o que o outro tem para dizer, não podemos fazer perguntas à sua racionalidade. Também esta conferência tem essa preocupação de tentar intervir na sociedade. Neste mundo global, onde prolifera o individualismo, é fundamental que municípios, empresas, escolas, IPSS... compreendam que há dimensões únicas, íntimas e individuais, porém habitamos um mundo com espaços públicos comuns e isso implica políticas públicas comuns. Mas, nesta 3.ª década do século XXI, elas têm de ser desenhadas conjuntamente e isso significa mediação comunitária; pensar o território, os seus problemas, as suas potencialidades com os agentes fundamentais das organizações básicas, onde o município e o ensino superior são elos poderosos da rede, para ouvir primeiro e, depois, trabalhar com os outros. O melhor exemplo disto, são os orçamentos participativos.

Como aparece a SIPS neste processo?
A SIPS contactou-nos. É um evento único no nosso País, que, antes, só aconteceu uma vez, no Porto, mas decorre, todos os anos, em Espanha, no Brasil e nas Américas. Fomos abordados em Palma de Maiorca, em 2019, pela Direcção da SIPS, que nos desafiou a organizar a conferência em Leiria, com eles. O tema resulta desta conjugação dos interesses da pedagogia social, que é a ciência-matriz da educação social com os temas da mediação intercultural, que exploramos na nossa conferência. Entendemos que é importante pensar na articulação entre a pedagogia social e a mediação intercultural, que é tão necessária ao mundo de hoje, se queremos viver juntos. Já, no final do século XX, o Relatório Delors dizia que um dos quatro pilares do desenvolvimento é “aprender a viver juntos”. Passaram mais de 20 anos e ninguém sabe o que é o relatório Delors. Só se fala em crescimento, crescimento, mas o que o relatório aponta é o “desenvolvimento” e explica que crescimento, só por si, não basta. Se aplicarmos o dinheiro apenas em armas, não há desenvolvimento. Se, para dar à luz, se tem de ir a 100 quilómetros de distância, porque o hospital desapareceu, não há desenvolvimento. O crescimento económico tem de ser transformado em desenvolvimento! Aprender a viver juntos, passa pela mediação de conflitos, disciplina que nasceu nos EUA, em Harvard, para resolver problemas nas organizações. Depois, passou a ser apanágio de muitas áreas, contudo, a mediação intercultural traz uma nova dimensão, porque “a tensão, o debate, um murro na mesa não são necessariamente conflito”. Se somos diferentes, temos de entrar no debate, que é um combate de ideias e a vida é tensão. Não é só amor. A vida é amor e ódio. Sem tensão, a vida não teria sal. N'O Principezinho, Saint-Exupéry dizia: “se és diferente de mim, ainda bem. Enriqueces-me!” Isto é a Humanidade. Não podemos fugir da Humanidade. Não se pode intervir socialmente, sem primeiro conhecer. E esse conhecer, não é exterior, com binóculos ou pelos papéis das estatísticas. É pela escuta activa! Na mediação cultural, quem está em choque, não são apenas dois indivíduos específicos; podem ser minorias, um patrão ou empregado. O que está em choque, não são os indivíduos, mas os valores e os posicionamentos culturais e sociais. A parte visível é que há uma pessoa a ralhar com outra, mas a mediação intercultural percebe o que está subjacente. Não se trata apenas resolver, mas contribuir para a construção de uma cultura de paz. A grande autora deste conceito, Maria Torremorell, vem fazer a conferência de abertura, no dia 20, às 12 horas. Porquê este horário? Porque é um horário mediador. Não podemos impor que as pessoas no Brasil ou no Uruguai se levantem às 4 horas para assistir online ao congresso em Leiria. O programa resulta da busca de um denominador comum. Haverá depois mesas redondas onde se fará o diálogo da pedagogia clássica com a social, que tem esta preocupação de intervenção social, de modo mediador com as populações fragilizadas, sejam elas minorias, crianças, jovens, alunos ou idosos. Fá-lo de uma forma que está para lá do paliativo. Ou seja, não se intervém apenas quando o rio Lis transborda. A intervenção social tem de ser socio-educativa e transformadora, não pode ser no final do processo. Quando o rio chega poluído à foz, podemos despoluí-lo, mas se a intervenção não começa a montante, o assunto continuará na mesma. No encerramento, teremos um professor da Universidade de Coimbra, que trabalha a educação de adultos através da mediação intercultural. Esta Conferência de Mediação Intercultural e Intervenção Social é recordista na Escola de Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria pois conta com 160 comunicações livres e temos 350 conferencistas inscritos, de Portugal, Espanha e América Latina.

Pegando no tema da convivência com o outro, Portugal que é um país de emigração, passou a país de acolhimento. Estamos a saber acolher o outro?
O conflito com o outro não é necessariamente um problema. Banalizou-se a palavra e qualquer discussão é vista como conflito e isso não é verdade. Qualquer discórdia implica uma certa tensão que é perfeitamente humana, porque cada cidadão tem direito a afirmar a sua posição. Temos de substituir a palavra tolerância, que é muito portuguesa e faz parte do racismo "português suave", por "respeito". Portugal é muito racista. Tem um racismo soft disfarçado e, muitas vezes, disfarçado pelo discurso religioso, que nos diz para sermos “tolerantes”. A ideia da educação para a tolerância é um erro profundo. A educação tem de ser para o respeito! O respeito não significa aceitar tudo, mas que temos de perceber que o outro, seja ele cigano, imigrante, de outro género ou transgénero ou de outro partido político, é um cidadão e tem direito a ser ouvido, não por “caridade”, mas por cidadania.

O termo tolerância é, em si, uma posição de poder?
A tolerância é assimétrica. A tolerância é um racismo disfarçado! O poderoso dá-se ao luxo de dizer que o outro pode falar... desde que não case com a filha dele. Como diz Françoise Héritier, a tolerância só pode ser o primeiro degrau da aprendizagem do respeito, mas, depois, tolerar é uma coisa muito parada, como se as culturas não fossem dinâmicas. Nesse acolhimento, quem chega, como Portugal chegou, a outros países, tem de se adequar, transformar um pouco, mas nós, que recebemos, para sermos hospitaleiros, também temos de nos transformar. Veja-se a política de Angela Merkel que aceitou a imigração, mas sem escolas estrangeiras e toda a gente tinha de falar alemão. É uma política assimilacionista e de ruptura com a cultura de origem. Os portugueses foram para a Alemanha e França ajudar a reconstruir no pós-guerra e foram bem acolhidos, mas a trabalhar no duro e a viver dentro de contentores. Mas as segundas e terceiras gerações não são iguais aos que imigraram e o imigrante não é um papel químico da cultura de origem. É uma pessoa que tem a sua identidade se vai transformando num mix com influência da origem e da chegada e competência para discutir, quer esteja em França ou na Alemanha. É entender o que está por detrás dos carros incendiado por imigrantes em Paris. Provavelmente, não houve acolhimento.

Foram fechados em ghettos, com pouco contacto com a cultura de chegada?
Exactamente. A ghettização, muitas vezes alimentada pela tolerância, cria barreiras. As pessoas têm hoje capacidade reflexiva, de argumentação e de reivindicação muito maiores, pela cidadania global. Em França, as mulheres querem ser francesas com véu ou sem véu e isto não cabe na concepção monolítica da cidadania republicana francesa ou portuguesa, onde parece que, num país, só há uma língua, uma cultura e uma religião. Mas há lugar para tudo no espaço público, mas tem de ser negociado, dialogado e mediado. Portugal é, hoje, mais multicultural, ainda assim, não podemos confundir Lisboa com Amesterdão ou Nova Iorque. Em Madrid, cada bairro tem uma equipa de mediadores multidisciplinar a trabalhar, onde se promove o possível dessa aproximação, mas onde se preserva também esse afastamento. Toda esta mudança é lenta, porque a história social e cultural está imbuída nos indivíduos. O grupo étnico mais antigo em Portugal são os ciganos. Estão cá há cinco séculos ou mais. A sociedade portuguesa tudo fez para os aniquilar. Quem ganhou essa luta? Foram os ciganos. São uma etnia de sucesso na luta contra a polícia, e Governos que criaram leis que só lhes permitiam permanecer 24 horas num local.

Esse tipo de medidas só reforça a manutenção da diferença.
Sim. E mais! A escritora nigeriana Chimamanda Adichie fala do perigo da história única. Ela chegou aos Estados Unidos e foi estudar para a universidade, onde ficavam admirados por ela falar tão bem em inglês, quando essa é a sua língua desde criança. Um pouco como o português, que, nos anos 20 do século passado, chegava ao Brasil e o estereótipo era o "senhor Manelzinho, de bigodinho e garrafão de vinho numa mão e um bacalhau noutra". Era assim o português, que, ainda por cima, era visto como “atrasado mental” e falava um português diferente. Quando os brasileiros, hoje, cá chegam, também não nos entendem nas primeiras semanas. Quando o "senhor Manelzinho" lá chegou, também não o entendiam e achavam que era estúpido. Ficou o estereótipo do Manel e da Maria. Em França, ainda hoje, quando se quer mudar uma fechadura ou arranjar o pladur, chama-se um português. Mas isto é história única. Os portugueses não são todos esses. Há um identidade pessoal que se constrói. Portugal, um país de emigrantes que tinha tido uma experiência de um império multicultural. As mulheres brancas em Moçambique, antes do 25 de Abril, já iam ao café e fumavam! Em Portugal continental, não iam ao café, não fumavam, não votavam. A experiência era multicultural, mas cada um no seu lugar. Nos anos 80, com a descolonização, chegaram os “retornados” e, afinal, nós, que somos tão santinhos e nada racistas, olhámos para eles como alguém que “nos vinha roubar o emprego”. Mas “eles”, eram objectivamente portugueses. Não eram apenas pessoas que se identificavam com o hino e com a bandeira... esse é um primeiro sinal desse “racismo português suave”. Ou seja, não queremos cá os nossos! E o mesmo acontece com os emigrantes, quando voltam e, depois, com as pessoas da Europa de Leste e com os brasileiros. O emigrante ou o imigrante reconstrói-se e não é o representante da sua cultura de origem.

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