Viver
A cuidar do legado de Afonso Lopes Vieira, 74 anos depois
Está em curso o restauro e limpeza dos livros da biblioteca pessoal do poeta, doados a Leiria. O espólio atrai investigadores de Portugal e do Brasil e continua a ser informatizado para facilitar a pesquisa à distância
Urgente, mas demorado. Provavelmente, um trabalho para vários anos. Pela primeira vez, os livros que constituem o legado de Afonso Lopes Vieira para Leiria estão a ser sujeitos a uma empreitada de tratamento e restauro.
Depois de cinco meses de actividade no ano passado, o novo contrato celebrado em Março de 2020 tem a duração de 12 meses e é renovável por igual período.
Parece curto para a dimensão da tarefa: oito mil volumes, entre eles, o mais antigo, com 471 anos, é uma tradução para castelhano de Apotegnas, de Erasmo de Roterdão.
No escuro, para escapar ao desgaste que a luz imprime, a livraria privada com aparência de museu encontra-se numa sala da biblioteca municipal, no Terreiro, disposta como no escritório do chamado Palácio da Rosa, a residência do poeta em Lisboa até à morte em 1946. E só acessível a investigadores autorizados ou visitas de escolas.
Na colecção de livros, manuscritos, revistas, jornais e partituras, todos os exemplares “estão em mau estado”, a pedir intervenção profunda no corpo e encadernação ou pelo menos “uma limpeza, um procedimento mais simples”, descreve Marta Matos, a técnica de conservação e restauro formada no Politécnico de Tomar, mas natural da Marinha Grande, a quem o Município confiou o projecto avaliado em mais de 20 mil euros.
As mudança de espaço ao longo dos anos não ajudaram e as oscilações nos níveis de humidade, por exemplo, causaram rachas nas lombadas, logo, restabelecer as encadernações é um dos objectivos.
A livraria de Afonso Lopes Vieira, doada à cidade por vontade expressa do escritor, numa acção materializada depois da sua morte pela mulher, Helena Aboím, e por um amigo, Américo Cortez Pinto, constitui o núcleo fundador da biblioteca municipal aberta ao público em 1955, nos Paços do Concelho, depois transferida, em 1997, para as actuais instalações no Largo Cândido dos Reis. E que tem o nome do primeiro benfeitor.
Desde Março de 2019, estão recuperados cerca de 70 livros. O trabalho é “muito demorado” e além de mãos secas e limpas requer instrumentos que também se encontram na medicina – bisturis, pinças, tesouras – para contrariar os efeitos da luminosidade, que é “um factor de degradação irreversível”, mas, também, da humidade, da temperatura e do apetite dos insectos, “os mesmos que comem a madeira”, explica Marta Matos.
No Facebook, é possível acompanhar o progresso do projecto, através de vídeos com menos de um minuto publicados regularmente na página da biblioteca municipal, com imagens do antes e depois para alguns livros já recuperados, em que se incluem Les Poesies d'Horace, uma tradução francesa de 1857 do poeta e filósofo romano Horácio, ou Voyages D´Antenor en Grèce et en Asie, avec des Notions sur l'Égypte: Manuscrit Grec trouvé à Herculanum, uma obra do escritor e dramaturgo francês Étienne-François de Lantier datada de 1800.
“Na conservação e restauro, aproveitamos ao máximo o que existe”, diz Marta Matos. “Não há nada criativo. É manter como está”. O objectivo é “preservar a patine”, ou seja, o aspecto antigo, porque “não interessa que [os livros] pareçam novos, quando não o são”. Seria “falsear a estética”.
Mina para investigadores
Como personalidade portuguesa na primeira metade do século XX, talvez o papel mais relevante de Afonso Lopes Vieira, que nasceu em Leiria a 26 de Janeiro de 1878 e veio a falecer em Lisboa um dia antes de completar 68 anos, seja a capacidade “de criar redes de intervenção cultural com muita gente”, assinala a bibliotecária Ângela Pereira, do Município de Leiria. Pessoas como Augusto Rosa e a esposa Leonor Rosa, Adriano Sousa Lopes, Agostinho de Campos, Raul Lino, Teixeira Lopes, Eugénio de Castro ou Antero de Figueiredo, entre outros. O que se reflecte na “fantástica” correspondência disponível, com preciosidades como a carta da actriz Amélia Rey Colaço em que lamenta a doença “da Marianinha”, a filha. “Quase parece que estamos a viver a época”.
Além da correspondência, que “tem sido pedida a consulta para diversos estudos da história cultural, política e literária portuguesa”, também o espólio “de manuscritos e alguns livros” são “fontes para o melhor conhecimento” do período em questão, sublinha Ângela Pereira, “inclusive nas ligações entre Portugal e Brasil”, o que tem atraído a Leiria “alguns investigadores brasileiros para desenvolverem trabalho sobre a geração brasileira contemporânea de Afonso Lopes Vieira”.
Homem da elite, o autor de Nova Demanda do Graal, Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa ou Animais Nossos Amigos, para sempre associado a São Pedro de Moel e às Cortes, estabelece “muitos contactos culturais e literários, apadrinha muitos novos escritores”, dava-se com figuras como Aquilino Ribeiro ou Teixeira de Pascoaes e na biblioteca municipal de Leiria “há imensos livros oferecidos pelos próprios autores”, o que “tem chamado muito investigador”.
Oito mil ou mais
Segundo Ângela Pereira, no acervo de Afonso Lopes Vieira contam-se oito mil volumes ou mais. Clássicos da narrativa ficcional, poesia, ensaios, filosofia e linguística, revistas académicas e científicas, jornais. “Um património” que “vale pelo conjunto”. Uns três mil exemplares não estão à vista, encontram-se no depósito, no mesmo edifício. Também carecem “de intervenção” no âmbito do tratamento, conservação e restauro.
Muitos livros têm o carimbo de António Xavier Rodrigues Cordeiro, advogado, poeta, jornalista e político, tio-avô de Afonso Lopes Vieira, a quem deixou em herança, além da casa nas Cortes, a biblioteca pessoal, que constitui o conjunto mais antigo da livraria privada que hoje se descobre no Terreiro. Muito activo em iniciativas de educação para a população, Xavier Cordeiro não tinha filhos e quando o jovem Afonso vinha a Leiria ficava com o tio-avô. “O primeiro contacto” com os clássicos e com a literatura portuguesa acontece “nessa bilbioteca fabulosa”, nota Ângela Pereira, é lá que conhece a obra de Gil Vicente e Francisco Rodrigues Lobo, no fundo, “nesse ambiente literário se dá talvez o clique” do futuro poeta e escritor.
A bibliotecária do Município de Leiria explica que actualmente os livros doados por Afonso Lopes Vieira à cidade “nem sequer são dados à consulta” quando não oferecem “condições de manuseamento”. Mesmo os que se apresentam em melhor estado, só a investigadores. Quando possível, tem-se optado “por fornecer cópias digitais”. Algumas fazem parte da Biblioteca Nacional Digital. “Temos de ser muito práticos e pragmáticos porque os livros já têm muitos anos e qualquer manuseamento estraga”, justifica. “Não temos nenhuma praga activa [mas] há livros que estão muito degradados”.
E agora, digital
Outro projecto a decorrer há anos visa passar para suporte digital a informação que existe na base de dados em papel e que constitui o catálogo de fichas da livraria Afonso Lopes Vieira. “Só depois de tudo informatizado é que conseguiremos ter uma perspectiva mais real, em termos numéricos, do que estamos a falar”, reconhece Ângela Pereira. Será também mais fácil o trabalho dos investigadores, que podem pesquisar à distância.
Para a investigadora Cristina Nobre, o mais interessante no espólio é “a quantidade de elementos que mostram como a actividade da escrita foi precoce em Afonso Lopes Vieira”, por exemplo, “jornalinhos que distribuía gratuitamente na praia”, na adolescência, como o título A Vespa, assim baptizado porque mordia a vida social dos veraneantes de São Pedro de Moel.
É uma biblioteca pessoal rica igualmente pela quantidade de livros com dedicatória oriundos da plêiade de amigos de Afonso Lopes Vieira, a elite de um determinado período da história portuguesa. “Quase toda a gente daquela época falava com ele”, resume Cristina Nobre. “E ele é uma espécie de padrinho literário de novos escritores, como foi do Vitorino Nemésio”.
Mais: segundo a professora do Politécnico de Leiria, Afonso Lopes Vieira “era uma espécie de opinion maker”, que colocou a obra de Gil Vicente em primeiro plano, levando-a ao teatro e adaptando textos para crianças – “até se ter começado a debruçar sobre Gil Vicente, ele pura e simplesmente não era estudado na escola” – e promoveu a redescoberta de outro poeta natural de Leiria, Franciso Rodrigues Lobo.
A influência de Afonso Lopes Vieira estende-se ao nome maior da lírica portuguesa, Camões. “Decidiu fazer uma nova edição dos Lusíadas e propôs essa edição à Imprensa Nacional Casa da Moeda, que é a que existe ainda hoje”, para depois viajar até ao Brasil e entregar em mãos o primeiro exemplar, no ano de 1928, numa antecipação da importância que hoje se dá à comunidade de expressão lusófona.
Manuscrito desaparecido
Mas, para Cristina Nobre, o mais estimulante da biblioteca pessoal de Afonso Lopes Vieira é aquilo a que a investigadora chama Notas Diversas, que atravessa duas décadas do trajecto do escritor, entre os 20 e os 40 anos de idade. “Fragmentos que ele vai animando”, às vezes apontamentos “sobre livros que estava a escrever”, o que permite vislumbrar os bastidores do trabalho conhecido e do que não chegou a ser publicado.
A grande busca, no entanto, é por um manuscrito desaparecido, o Memorial de um Construtor de Nuvens, o mais próximo que se imagina de um balanço redigido na primeira pessoa. “A minha esperança é que ainda venha a aparecer”, afirma Cristina Nobre, “porque de certeza contaria muitos factos da vida do Afonso Lopes Vieira” e “iluminaria muito da história da censura [pelo aparelho do Estado Novo] e da censura que lhe calhou a ele”.
Um instrumento essencial para um outro restauro, o restauro biográfico.