Desporto

Aventuras de um treinador de Leiria numa escola secundária do Bronx

26 set 2016 00:00

Há 13 anos, Ricardo Furriel emigrou para Nova Iorque para dar aulas de Educação Física. Hoje, é treinador de basquetebol numa escola pública de um bairro problemático.

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Passavam precisamente dois anos do 11 de Setembro quando Ricardo Furriel aterrou no aeroporto John F. Kennedy. Tinha 24 anos e depois de ter sido seleccionado num concurso de recrutamento de professores de Educação Física realizado na Áustria, o sonho de viver em Nova Iorque tornava-se bem real.

No entanto, o que inicialmente não passava de uma aventura, acabou por tornar-se numa mudança radical de vida. E, passados 13 anos, Ricardo é casado, tem um filho e, por mais improvável que isso possa parecer, é treinador de... basquetebol na cidade do mítico Madison Square Garden e dos históricos New York Knicks.

Quem diria! Este leiriense, ex-jogador do CBL e licenciado em Desporto e Educação Física pela Universidade do Porto, assumiu há cinco anos os destinos da principal equipa da Harry S. Truman High School, localizada no problemático bairro do Bronx, em Nova Iorque.

Num país em que o desporto escolar é a base de toda a prática desportiva, o patamar imediatamente abaixo da liga profissional, a inigualável NBA, é ocupado pelas as competições universitárias (NCAA) e o seguinte é ocupado pelas escolas secundárias, onde centenas de milhares de miúdos dos 11.º e 12.º anos de milhares de estabelecimentos de todo o país sonham, um dia, atingir o estrelato e mudar de vida.

Apesar de os Estados Unidos serem líderes do ranking da federação internacional de basquetebol (FIBA) – Portugal é um obscuro 83.º classificado dessa tabela – não se pense que no país de Michael Jordan sabem tudo da modalidade.

Podem afundar e fazer desarmes de lançamento como ninguém, mas o coach Furriel garante que os seus meninos têm muitos conceitos a aprender com os europeus, mesmo aqueles que jogaram basquetebol no antigo ringue do parque do avião.

“Há aqui miúdos com um dom natural, são atletas por natureza e resolvem as situação recorrendo aos atributos físicos. Nós, europeus, somos mais pequeninos, mais fraquinhos, e temos de trabalhar muito mais.”

Ricardo Furriel foca-se no aperfeiçoamento de aspectos técnicos do jogo que os seus Mustangs e todos os rivais têm menos trabalhado.

E dá um exemplo. “O Kobe Bryant, que é o Kobe Bryant e é americano, admite que a técnica dele resulta do facto de naquele período chave, dos 10 aos 13 anos, ter vivido em Itália com o pai, onde conheceu treinadores europeus que lhe ensinaram ferramentas básicas como o drible, o passe ou o jogo de pés. Elementos técnicos que os americanos não têm tão evoluídos.”

Mas como será que este leiriense de estatura média convence os seus atletas da Harry S. Truman High School, estabelecimento que está no top 25 entre as mais de 200 escolas existentes na cidade de Nova Iorque? Encestando.

“Os miúdos são muito críticos e gostam de ver para crer. Vai ser difícil vender uma ideia se não mostrar do que estou a falar. Por isso, como tenho um lançamento muito bom, a forma de puxá-los para o meu lado foi exibir coisas que fazia melhor do que eles. ”

Minoria das minorias

Curiosamente, mais uma época está a caminho de começar nos Estados Unidos. O mercado de transferências na NBA está ao rubro e nas universidades os miúdos tudo fazem para suscitar o interesse dos olheiros das equipas profissionais.

No entanto, até chegarem a esse patamar, tiveram de atravessar filtros atrás de filtros, porque nesse enorme país “todos querem” ser jogadores da NBA. E dos milhões que sonham, apenas 450 atletas têm lugar na competição.

“Na minha escola, que tem à volta de mil rapazes, 200 ou 300 gostavam de jogar basquetebol, mas só há lugar para 12.” Mais.

“Para passar ao próximo nível, as universidades, que conduzem eventualmente à NBA, estamos a falar de um processo muito mais complicado e o número de miúdos com qualidade para jogar a esse nível ainda é mais reduzido. Para se chegar lá a cima têm mesmo de ser jogadores do outro mundo”, remata o treinador.

Precisamente por a NBA não passar de um sonho para a esmagadora maioria, Ricardo Furriel tem como objectivo primordial que os seus meninos não larguem a escola.

“Não necessariamente ter um curso superior, porque não podem ser todos doutores, mas enveredar por uma escola profissional, por exemplo. Se conseguirem aliar com o basquetebol será excelente, porque todos devem ter sonhos e pensar alto, mas devem sempre manter o foco na carreira académica.”

Apesar da conjuntura, Ricardo Furriel também tem metas para a carreira enquanto técnico. Na primeira temporada em que esteve na Harry S. Truman High School, a equipa não venceu qualquer partida, mas no ano passado tiveram tantas vitórias como derrotas e ganharam até um jogo do playoff pela primeira vez numa década. A nível pessoal “gostava de meter um puto numa universidade de topo nos próximos quatro ou cinco anos”, admite.

No entanto, salienta, o facto do trabalhar no Bronx não facilita propriamente essa tarefa. “Há miúdos sem apoio familiar, sem pai e mãe em casa, alguns vivem sozinhos ou com tios. É uma escola com muitos atletas carenciados, pobres, que vêm de condições sociais complicadas. Quando chegam às minhas mãos tem uma lacuna na parte académica que é necessária para poder atingir uma universidade de topo.”

Em Nova Iorque para ficar

Após seis semanas de férias em Portugal, Ricardo Furriel está “de barriga cheia”. Admite que quando está em Nova Iorque sente falta da família, dos amigos, da comida, do clima ameno e “de não ter de planear o dia-a-dia porque fica tudo a dez minutos de casa”.

Do que não sente falta é da burocracia. “Em Nova Iorque é tudo muito mais prático e tem mesmo de funcionar, porque é tanta gente…”

O futuro, esse, vai continuar a ser do outro lado do Atlântico. “Em 2003 era mais uma aventura. Tinha um visto que tinha de ser renovado ano a ano. Resolvi experimentar, mas nunca pensei ficar. Já passaram 13 anos e agora a mulher é americana – casámo-nos na Batalha há três anos – e temos um menino de sete meses. A nível pessoal não tenho intenção alguma de voltar. A minha família e os meus amigos sabem que estou bem e que tenho uma vida boa. Faço o que gosto, tenho uma família, sinto-me feliz.”