Covid-19
Deixaram a casa, deixaram os seus. Fazem-no por amor e por missão
São muitos os profissionais que, nesta fase de pandemia, deixaram de ir a casa. Afastaram-se daqueles que amam, por amor e sentido de responsabilidade. Mas nem sempre é fácil
Por estes dias de confinamento, enquanto muitos se entregam aos beijos inocentes dos filhos e aos abraços cúmplices dos maridos e das esposas, para ultrapassarem em conjunto este período de restrições, são muitos os profissionais que, para poderem dar continuidade à sua missão, nos hospitais, nos lares, ou pelas estradas da Europa, estão a abdicar do contacto com a família. É uma atitude de amor e de responsabilidade, explicam alguns destes soldados, que falaram ao JORNAL DE LEIRIA acerca destes dias de guerra contra a pandemia.
Fazer do emprego a própria casa
Mãe pela primeira vez, Vanessa teve de deixar a filha bebé e, com grande tristeza, pôr um ponto final num dos gestos que mais as unia, a amamentação. Vanessa Póvoa, de 36 anos, é directora técnica da Residência Eira da Torre e faz parte do grupo de 23 colaboradores que desde 31 de Março permanecem em isolamento total com os cerca de 60 idosos daquele lar de Santa Eufémia, em Leiria.
É uma medida extrema e que implica grande espírito de missão por parte dos funcionários, conta a directora, que espera que, depois deste período, a actividade de quem trabalha nos lares seja mais reconhecida. Para já, frisa a responsável, a experiência já trouxe importantes mudanças de perspectivas. A partilhar o mesmo espaço durante tanto tempo, todos os colaboradores passaram a conhecer-se melhor enquanto pessoas, muito além do desempenho profissional de cada um. Além disso, o isolamento permitiu viver na primeira pessoa as dificuldades que alguns idosos enfrentam à chegada a uma instituição, seja a perda da casa, das rotinas ou do contacto com os seus, nota a directora técnica. Vivê-lo permite reflectir e tentar procurar ainda mais recursos que possam minimizar esses constrangimentos aos utentes, relata a responsável.
Vanessa Póvoa explica que são poucos os funcionários desta instituição que se encontram nas suas casas. Para algumas pessoas da equipa não havia mesmo alternativa e era preciso garantir assistência aos filhos, expõe a directora. Mas, todos os que puderam fazê-lo, decidiram em conjunto que a melhor forma de proteger os idosos era permanecer no lar.Com o apoio da Cruz Vermelha, da Câmara de Leiria e da União das Freguesias de Santa Eufémia e Boa Vista, foram cedidas as instalações do jardim-de-infância, que fica nas imediações do lar, para que alguns colaboradores ali pudessem permanecer, enquanto outros estivessem na residência, explica a directora.
Também o sistema de folgas se mantém, para que todos tenham direito a descanso, ainda que sem abandonar a instituição. Atenta ao desenrolar dos acontecimentos, a direcção irá reavaliar a situação no final deste mês, para perceber se será viável formar diferentes equipas, que possam de forma rotativa regressar a casa, e ficar por uma semana ou quinze dias, antes de voltarem para mais uma quinzena no lar. Vanessa Póvoa reconhece que, apesar de todo o carinho manifestado pelas famílias dos utentes, que quase todos os dias enviam bolos e mimos para idosos e funcionários, o esforço de cada colaborador é enorme. Bem como o dos seus cônjuges, que ficam sozinhos a gerir a casa e os filhos.
É esse o caso do seu companheiro, que reparte os dias entre o teletrabalho e os cuidados com a bebé de 18 meses, exemplifica a directora. Para Vanessa, há que evitar as penosas vídeochamadas com a menina, que se sempre a fazem desabar. São preferíveis as chamadas por voz, considera a directora, que já vai conhecendo as armas que melhor a defendem do ponto de vista psicológico.
Calar o coração e dar voz à razão
Rosa Fernandes, de 37 anos, enfermeira no serviço de Medicina do Hospital Bernardino Lopes de Oliveira, em Alcobaça, não vê o marido nem os dois filhos há semanas. Juntamente com o companheiro, também ele enfermeiro, optou pela separação de todos, como forma de proteger o agregado. Rosa passou a viver numa habitação emprestada por amigos, que estava desocupada, para que o seu marido pudesse ficar também sozinho, na casa de ambos. Quantos às crianças, de oito anos e 23 meses, passaram a residir com os avós.
“Há dias de muita saudade. Mas prefiro estar longe dos filhos sabendo que não têm qualquer problema, do que estar perto, sabendo que correm riscos”, justifica a enfermeira, que em nada se arrepende da decisão. “Calo o coração e penso no bem comum”, acrescenta Rosa. Através do telefone, tentam encurtar-se as distâncias. E quando o desespero aperta, faz-se uma visita e olham-se de longe, relata a enfermeira.
Bilhota Xavier, director do serviço de Pediatria do Centro Hospitalar de Leiria, explica que são muitos os enfermeiros e médicos que nesta fase estão a viver em isolamento, para proteger pacientes e a sua própria família. Embora tudo esteja a correr com mais tranquilidade do que noutras regiões do País, o risco existe e é preciso minimizá-lo. Mas os WhatsApp desta vida não colmatam a necessidade de contacto físico destes profissionais, que estão a passar por dificuldades ao nível psicológico, frisa o director.
O peso da discriminação
Os dias de Diogo Rodrigues são de uma solidão atroz. Nos últimos tempos, o camionista de 35 anos teve de tomar uma decisão difícil, mas que se impunha, para bem da sua família e para bem de todos aqueles com quem diariamente continua a cruzar-se. Ainda nem as escolas e as creches tinham sido encerradas e já Diogo tinha traçado uma estratégia com a família, de forma a que as suas viagens constantes pelo País, e fora dele, não colocassem em risco a saúde dos seus. Residia até agora na Marinha Grande, com a esposa e duas filhas, de 4 meses e 3 anos. Mas a pandemia fez trocar as voltas ao agregado, que passou a viver em Ourém.
Todos, menos Diogo, que ficou sozinho em casa, na Marinha Grande. “A minha mulher e as minhas filhas foram para casa da minha mãe, para que ela possa ter apoio com as meninas e ficar em teletrabalho”, explica o camionista. Depois de percorrer 600 ou 700 quilómetros por dia, Diogo regressa ao silêncio da casa, que já não é um verdadeiro lar. Vê as meninas através do telemóvel, mas os diálogos são breves instantes, como é de esperar em crianças tão pequenas, reconhece o camionista. Basta saber de um pequeno acidente doméstico, uma queda de uma das filhas, para se sentir “completamente impotente”. E há a casa para limpar, as compras para fazer, as refeições para confeccionar, sempre sozinho, depois de horas a conduzir igualmente sozinho.
Em todos estes dias, arriscou visitar a família poucas vezes, depois de muito sedesinfectar. Saboreiam-se uns abraços e é tempo de voltar à solidão. Mas não podia ser diferente, considera Diogo. Havia que continuar a trabalhar. Não só porque o vencimento faz falta ao agregado, mas também porque havia um sentido de missão latente. “Grande parte do que transporto são bens essenciais, que fazem falta às pessoas”, justifica o camionista.
Mas não é só a solidão que o fere. Diogo explica que, por medo, muitos clientes já não o deixam descarregar mercadoria. Apesar de utilizar máscara e luvas, os clientes preferem retirar os artigos do camião do que aceitar a sua ajuda. E já teve clientes que o despacharam da empresa à pressa, para evitar que pensasse sequer em utilizar a casa de banho ou tomar um café. “Não sou nenhum leproso”, desabafa o camionista.
O reconhecimento como combustível
Hugo Carvalho, de 36 anos, é técnico de emergência pré-hospitalar, pelo que assegura o transporte de doentes, de ambulância, em Leiria. O técnico faz parte de um grupo de sete profissionais, que desde logo optaram por não ir a casa e assim restringir ao máximo o contacto com as suas famílias durante essa fase de pandemia. “Todos nós estamos cientes do risco associado à nossa profissão, por isso, tentamos proteger os nossos”, justifica Hugo. Encontrar casas para este grupo foi relativamente fácil, explica o técnico.
O INEM, a Câmara Municipal de Leiria e o Politécnico de Leiria entraram em diálogo e num instante foram disponibilizadas residências de estudantes a este grupo, explica Hugo Carvalho, em jeito de agradecimento. No caso destes profissionais, a população tem manifestado reconhecimento pela sua missão. E este é de certa maneira o fuel que necessitam para continuar a dar o seu melhor, realça o técnico.
O facto de se manterem ao serviço e de poderem partilhar o seu dia- -a-dia com os colegas também facilita o processo. “Acaba por não se sentir tanto a solidão”, conta Hugo. “É bem pior para as nossas famílias”, realça o técnico, que nesta fase teve de deixar em casa a companheira grávida. E, como ele, há outros colegas que têm em casa os seus filhos pequenos. Quem fica tem de gerir a solidão e a vida doméstica. As novas tecnologias têm sido a tábua de salvação. Ver a família, mesmo que através de telemóvel, vai permitindo encurtar o distanciamento e manter a saúde mental de todos. Abraços e beijos estão por agora fora de questão. “Quando vamos buscar comida ou roupas a casa, ficamos a metros de distância”, relata Hugo.