Desporto

Interrupção no Desporto é golpe na saúde, no talento e na cidadania

2 fev 2021 17:33

Retidas em casa, as nossas crianças deixaram de praticar desporto federado. As consequências físicas, psicológicas e sociais desta interrupção poderão acompanhá-las por toda a vida

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Pandemia impede treino das crianças
Ricardo Graça

“Incerteza.” Muito mais do que uma mera palavra, é a terrível sensação que, por estes dias, incomoda os agentes desportivos. De treinadores a atletas, passando por dirigentes e até árbitros, todos estão angustiados, sem saber o que o futuro lhes reserva. Em Março do ano passado, os desportistas deste País foram mandados para casa.

Dez meses depois, quando havia a esperança que tudo começasse lentamente a voltar à normalidade, surge o momento mais grave da pandemia em Portugal, que obriga o País, e não só o Desporto, a parar.

Os dados que constam dos gráficos à direita são avassaladores. O número de atletas federados na Associação de Futebol de Leiria, por exemplo, sofreu um corte de 70%, praticamente todos nos escalões mais baixos da formação.

O panorama é transversal e deixa os responsáveis das várias modalidades preocupados com o futuro dos jovens, dos clubes, das selecções e da saúde pública. Todos, mas mesmo todos, vão sofrer.

“Tal como numa construção, os alicerces são construídos primeiro e têm de suportar as cargas da construção. Na vida de uma pessoa, as fundações a nível físico, social, emocional e cognitivo, entre outros, começam a construir-se na infância. É um tempo crucial para a vida de qualquer pessoa e, como diz o povo, o tempo não volta atrás”, explica o coordenador do curso de Desporto e Bem-Estar da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria.

Para Nuno Amaro, o confinamento veio agravar o dia-a-dia dos mais novos, que viviam “fustigados pelo sedentarismo”, pela “adição aos jogos digitais e dietas pouco saudáveis”. Antes, quatro em cada cinco adolescentes não praticam qualquer exercício físico. Portugal ocupava a cauda da Europa. Agora, os dados serão consideravelmente piores.

Este estilo de vida “pouco saudável”, acentuado nas “duas últimas décadas”, já se traduzia em crianças e adolescentes “menos aptos fisicamente” e com “prevalência de doenças que se irão reflectir nas suas vidas futuras”, como doenças cardíacas, diabetes ou cancro.

“Os níveis de actividade física (o movimento no dia-a-dia, sem enquadramento profissional) já eram baixos. O exercício físico (melhoria ou manutenção da aptidão física, com enquadramento profissional) era praticamente remetido à Educação Física na escola e o Desporto (melhoria ou manutenção da aptidão física, com enquadramento profissional e com quadros competitivos) mobilizava uma pequena fracção da sociedade infanto-juvenil.”

Agora, como no primeiro confinamento, as crianças e adolescentes estão ainda mais “em cativeiro” e as consequências podem ser “catastróficas” a vários níveis, entende o docente. Estima-se que sejam 200 mil jovens no País privados da prática desportiva, jovens que encontravam nos clubes um local privilegiado para a actividade física.

Desde a simples brincadeira com os amigos, às aulas de Educação Física e ao treino e jogo no clube, todas enriquecem as crianças e adolescentes em variados domínios: “o prazer de brincar, o vencer e o perder, o sofrer, a resiliência do tentar, do acertar e do falhar, o respeito e lealdade, o lidar com defeitos e feitios dos outros, o rir e o chorar, entre tantos outros outputs”, diz Nuno Amaro. A vida em sociedade é algo que a actividade física antecipa, no fundo.

Oxigénio

Preocupado com os jovens, com os clubes, com os árbitros e com a alta competição, o presidente da Associação de Futebol de Leiria pede apoio para que os clubes não fechem de vez.

As associações distritais de futebol estão, de resto, a contactar todos os grupos parlamentares para analisar a necessidade de apoios extraordinários de relevo para os clubes, que até agora só receberam apoios das autarquias, no âmbito do novo quadro de apoios comunitários, sob pena de se assistir ao “colapsar do tecido associativo desportivo do País, com todas as consequências dramáticas que tal implicaria em termos de coesão” da sociedade.

“Precisam de oxigénio”, entende Manuel Nunes.

Considera que o momento é “dramático” e teme que “25% vão ter dificuldades em reabrir”. Por outro lado, “os grandes, com 400 atletas e 20 equipas, vão ficar com metade”, antecipa. Admite também que deve começar a pensar-se na época 2021/22. “Com estes números grotescos da pandemia corremos o risco de não estar pronto até Março. E depois, como se faz a retoma?”

Além de todas as questões de saúde, Manuel Nunes antecipa problemas para o rendimento e até para as selecções nacionais.

Está em causa o comprometimento da evolução desportiva de milhares de praticantes, que almejam e têm condições de chegar ao topo, e a quebra que se adivinha desastrosa da alimentação do topo da pirâmide desportiva, que irá acarretar uma grande quebra de qualidade e de competitividade das selecções nacionais e também nos clubes de topo nacional.

“Todos nós sabemos que um atleta, ao fim de quatro semanas, perde as capacidades que tinha vindo a adquirir ao longo da temporada desportiva.”

Por outro lado, o que não é apreendido em determinada idade já não será mais tarde. “É a chamada fase dourada ou sensível, que surge fundamentalmente entre os 8 e os 12 anos, quando um estímulo aplicado nessa altura tem uma grande receptividade por parte do jovem. Não sendo feito nessa altura, ele perde-se e não vai ter essa evolução. Se não se faz, já passou. Podem continuar a ser praticantes, mas não passarão de praticantes normais. Por isso é que as federações, as associações e os clubes, verificando que as aulas de Educação Física e Desporto Escolar não respondiam, começaram a antecipar as actividades”, explica o responsável.

Abandono

Para o presidente da Associação de Ginástica do Distrito de Leiria, o panorama também é negro. “Temos uma redução significativa da actividade em todos os clube, com apenas uma excepção. Por um lado tem havido uma diminuição da procura, por outro, a necessidade de respeito pelas limitações impostas, pois não pode haver tantos miúdos a treinar ao mesmo tempo”, sublinha David Silva.

Desde Março que não há competições de ginástica e o período tende a prolongar-se. “A incerteza é terrível. Não vejo condições mínimas para fazer actividades antes de Maio, com a pandemia a abrandar e a vacinação a correr bem.”

E há outro factor de instabilidade que assola as mentes dos poucos que continuam a treinar neste momento, aqueles ligados ao alto rendimento. “É um risco, porque se se magoarem e tiverem de ir para o hospital, como é?”

No entanto, está muito mais em causa. “Estamos a perder gerações. Vão passam dois anos sem competir. Há muita gente a abandonar. Têm ido para casa e são miúdos que não vão voltar a fazer desporto.”

Serviço público

“Os protagonistas a nível local não sabem o que hão-de fazer”, exclama Luís Gonzaga, docente de Psicologia do Desporto na Escola Superior de Desporto de Rio Maior. “Foi montada uma máquina que visava proporcionar os benefícios inequívocos da prática desportiva, não apenas de condição física, para também de natureza psicológica e psicossociológica, como a auto-estima dos miúdos, a motivação, o envolvimento em situações de interacção e a própria participação social, e está tudo de mãos e pés atados.”

Os dirigentes e treinadores acabam por tornar-se também professores. “É um serviço público autêntico para benefício de gerações e gerações que praticam desporto. Os clubes merecem ser financiados e ter todo o apoio do Estado. É um serviço que não se substitui às escolas, nem à Educação Física.”

Por isso, entende que esta paragem ameaça o normal desenvolvimento das crianças. “Há miúdos que abandonaram e é como se deixassem a formação a meio. No desporto, o respeito e a preocupação pelo outro, seja árbitro, adversário ou colega, o respeito pelas regras ou pelas convenções sociais, o compromisso com a participação social, avolumamos tudo isto responsabilizando os miúdos que se vão sentindo cidadãos por direito, primeiro ao nível da equipa, depois do clube e mais tarde na própria localidade, quando se tornam referências para a comunidade.”

Acabamos como começámos. “Se o Governo tivesse dito que ia parar o Desporto por dois anos arranjávamos estratégia e planos para dois anos de paragem. O que tem acontecido é que paramos e pensamos que vamos retomar. Em Maio retomou tudo, mas o Desporto não. Os treinadores iam fazendo planos de treino e enviando para casa dos atletas, via e-mail. A normalidade nunca voltou e isso nunca foi afirmado. Voltou a haver uma golfada de ar de esperança em Outubro, que depois não deu em nada. Quando é que o horizonte traz a prática desportiva? Não temos esse horizonte. Esta incerteza é que tem corroído.”