Sociedade

João Camargo: “temos de planificar o País para uma escassez de alimento, como não vivemos há dois séculos”

11 jul 2019 00:00

O especialista em alterações climáticas, explica a urgência de uma revolução agroflorestal em Portugal, para impedir que este se torne um deserto queimado.

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Jacinto Silva Duro

Fala ainda da necessidade de impedir a exploração de gás na Bajouca e Aljubarrota e na incapacidade do Estado em fiscalizar o ambiente.

Além de plantar floresta autóctone, resistente e que conserva a água no solo, o que deve ser feito, em Portugal, para lutar contra as alterações climáticas?
É preciso uma floresta que permita uma combinação de floresta com agricultura. Estamos a usar os terrenos agrícolas para plantar eucalipto! Somos totalmente dependentes da importação de alimento. E, pior, estamos completamente confiantes de que nunca haverá uma oscilação no comércio internacional de alimentos. Isto é irracional. Temos de planificar o nosso País para um mundo com escassez de recursos e alimento, como não vivemos desde há dois séculos. Temos de ter capacidade de produção de alimento, de moderar a temperatura e de preservar a água. É difícil, mas consegue fazer-se. Consegue-se criar uma floresta que resiste a incêndios, que não dará dinheiro muito rápido, mas que dá outras coisas de que precisamos: água, moderação de temperatura, alimento e estabilidade social. Estas coisas não são, obviamente, articuláveis com uma lógica de curto prazo, a pensar em eleições e na satisfação de uma clientela empresarial. Isto é uma coisa maior do que isso. Não se pode pensar em prazos muito apertadinhos e é preciso fazer mais na área da energia. Não temos qualquer interesse em continuar a expandir a nossa capacidade de importação de gás. Não faz sentido manter centrais eléctricas que queimam carvão importado. É uma vergonha não explorar a nossa capacidade de produção de energia eólica e solar! 

As áreas concessionadas de Batalha e Pombal têm reservas de gás natural... 
Felizmente, a maior parte das concessões existentes em Portugal foram canceladas e só se mantêm Batalha e Pombal. Infelizmente, apesar da retórica de combate às alterações climáticas, o Governo resolveu manter a legislação em vigor, mas Batalha e Pombal também serão canceladas. Numa apresentação para os accionistas, a Australis, a empresa que detém as concessões, referia como mais-valias para a exploração em Portugal, o facto de a população não ser "muito activa" a nível ambiental, que o "Estado não tem grande força", que a legislação ambiental e os contratos são muito benéficos para a exploração. É verdade que o Estado tem zero de capacidade para inspeccionar e fiscalizar o que quer que seja. A Agência Portuguesa do Ambiente é uma vergonha e nem sequer tem de inspeccionar quaisquer complexos industriais. Curiosamente, o Estado propunha fazer a inspecção de furos de petróleo a dois mil metros de profundidade no mar, pela Entidade Nacional para o Mercado dos Combustíveis. Estamos a brincar? Aquilo era um gabinete com duas pessoas de fato, que jamais viram um barril de petróleo!? A Australis vai ter uma enorme surpresa com a população. Aliás, já está a ter. A população e as associações de combate às alterações climáticas não estão disponíveis para ter sequer uma posição conciliatória com a empresa. 

Leia aqui a segunda parte desta entrevista
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O modelo de exploração e de compensação é muito diferente daquele que a Noruega tem, e que é apontado como um exemplo?
Não é possível uma comparação. Os contratos de Batalha e Pombal são draconianos. Para as populações a compensação é zero. Para o País seria muito pouco… E mesmo que houvesse contratos como os da Noruega, neste momento, até esse país está à beira de travar as suas explorações de hidrocarbonetos. Sabemos que temos de cortar 50% das emissões dos gases com efeito de estufa até 2030 e sabemos que as reservas de petróleo, gás e carvão conhecidas são suficientes para o planeta aquecer 12º. Até 2030, só podemos queimar mais 10% dessas reservas. Temos de dizer às principais economias do mundo e aos Governos mais ricos de sempre que 90% do que contavam como sendo dinheiro em caixa, tem de ser esquecido. Se não o for, podemos esquecer as condições materiais que permitiram o aparecimento da civilização humana. Poderá não ser o fim da Humanidade, mas será o fim do conforto e desta civilização. Poderemos estar perante uma vida de caçadores recolectores, num cenário apocalíptico, como o de Mad Max. Enquanto isto está a acontecer, temos Governos que dizem ser paladinos do combate às alterações climáticas, como o nosso, e comparando com outros países, até é verdade, mas dizem que é preciso explorar petróleo e gás! É um nível total de insanidade institucional. Há uma dissonância cognitiva entre o que as pessoas acreditam e que o nos diz a ciência sobre o que é a realidade física. É um processo tortuoso até chegar à acção coerente com o que se passa e não há um único país no Mundo a fazê-lo. Isto implica destruir a estrutura de poder que existe hoje. Os mais ricos do Mundo são-no porque se construiram numa base da matriz energética, baseada nos hidrocarbonetos. Eles mandam no Mundo e sabem que, para sobrevivermos, terão de abdicar desse poder. 

Essas medidas implicam uma redução do nível de vida actual?
Se for planificado, pode ser uma coisa relativamente indolor. Na verdade, a redução de 50% da emissão dos gases com efeito de estufa levar-nos-ia a valores similares aos do início dos anos 80. Não é propriamente a Idade da Pedra. Seguramente, não consumiríamos tantas coisas como hoje fazemos.
 

Perfil
Activista ambientalista

João Camargo, nasceu em Lisboa, em 1983, e é licenciado em Engenharia Zootécnica e mestre em Engenharia do Ambiente e Produção Animal. Foi jornalista e professor de Química e Botânica na Universidade Lúrio, em Moçambique, e técnico da Liga para a Protecção da Natureza. É activista do movimento Climáximo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, e autor dos livros Que Se Lixe a Troika (2013), Manual de Combate às Alterações Climáticas (2018) e co-autor do livro Portugal em Chamas (2018). É cronista do jornal Público e uma das faces da luta contra a exploração de gás nas concessões Batalha e Pombal.

Portugal tem uma boa cobertura de produção eólica, mas, por exemplo, o mar não é usado, a não ser para a pesca e mesmo essa actividade está a sobrexplorar os peixe que existe na nossa costa. 
Qual é o nosso desígnio? Portugal quer manter-se como um território viável no futuro, mas, enquanto Humanidade, qual é o nosso objectivo? A primeira pergunta que temos de fazer é: queremos sobreviver? Sim ou não? Se sim, em que condições? Depois é planear para essas condições. Hoje, temos uma temperatura mais quente do que nos últimos 120 mil anos! A última vez que esteve assim calor, o Rio Reno, na Alemanha, e o Tamisa, em Londres, tinham crocodilos e hipopótamos! E havia apenas um milhão de homo sapiens. Somos hoje, 7,7 mil milhões. 

É um processo que se não for parado tornará o planeta inabitável para muitas espécies, incluindo a humana?
Há um limite para actuarmos. Se o ultrapassarmos, o planeta, que se está marimbando para os humanos, vai resolver o problema. Se nos extinguirmos, a Terra continuará a existir. Haverá outras espécies menos complexas, mas mais bem preparadas para viver num planeta mais quente. Nós, humanos, temos a nave espacial Terra e mais nada e nem vale a pena pensar em fantasias de colonizar outros planetas. Quer dizer… Se, com mais 1,5 ℃, é já difícil viver, imagine-se sobreviver em Marte. As histórias que construímos sobre a nossa excepcionalidade, enquanto espécie, neste momento, são um obstáculo para agir em força. Cerca de 90% do calor que está a ser produzido em excesso é absorvido pelo oceanos e eles estão a aquecer muito. Isso significa que as correntes marítimas que distribuem o calor do Equador para os pólos estão a desacelerar e a estabilidade climática com várias estações, pode acabar. E sem ela, não há agricultura, e não há alimento para a população. Os mais pobres vão sofrer muito, mas os países ricos também sofrerão, por mais ar condicionado e tecnologia que tenham em casa. 

O nosso modo de vida, consumista e assente no capitalismo, é um entrave às medidas necessárias?
Temos instituições, como a União Europeia, que diz que é preciso crescer sempre 3% ao ano. O BCE e o Banco Mundial têm discursos semelhantes. Para eles, é preciso crescer sempre todos os anos! Não faz sentido.

E uma diminuição da população mundial? Faz sentido?
Isso facilitaria soluções que não o são. Seria como se houvesse populações que não merecem que se lute por elas. Isso parte do pressuposto que, a única interacção que temos com o meio ambiente é degradá-lo. Na história da Humanidade, já vivemos em sistemas onde a nossa presença ajudou a melhorar o ambiente e a complexificar sistemas. A Amazónia é um desses casos. Temos a ideia de que aquela floresta é um fenómeno natural, mas há cada vez mais provas de que a sua enorme diversidade biológica está ligada a povos vindos de toda a América que levaram para ali plantas diferentes e que a floresta beneficiou em termos de água e biodiversidade dessas civilizações desaparecidas. Além disso, nós somos muito bem capazes de pensar no que vamos fazer e como melhorar o ambiente. Não há nada determinado e como espécie não temos de ser destrutivos. O número de habitantes depende de qual é a sua relação com o seu entorno e isso depende e varia de país para país e há alguns onde não há consenso, porque o sistema económico é tão poderoso, como nos EUA, que mesmo a decisão dos povos pode ser impotente.