Sociedade

Miguel Real: “A nossa elite é canina na obediência e macacóide face ao estrangeiro”

31 dez 2015 00:00

O filósofo, romancista e escritor gosta de escalpelizar a causa das coisas e tem teorias sobre as maleitas que nos afligem e o caminho para a lucidez. “Somos um povo que acredita que, sem a cunha, sem o Euromilhões e sem Fátima não passa da mediania.

"Seguimos o que está na moda na Europa e América. Até agora, era o neoliberalismo e fomos todos neoliberais" (Fotos: Rui Miguel Pedrosa)
Jacinto Silva Duro

Costuma dizer que uma das coisas que o aborrecem é a falta de cuidado de alguns escritores ao escrever romances históricos. Por contraste, para os seus livros, admite fazer sempre trabalhos de preparação e pesquisa exaustivos…
Um romance histórico exige uma grande investigação. Se for passado no Brasil, que é o caso do meu livro A Guerra dos Mascates [2011], implica uma ida lá e não basta “apanhar as frutas no Pão de Açúcar". Tem de se ir ao Pernambuco, à Bahia ou, no caso de se escrever sobre o padre António Vieira, a Belém do Pará, ou ao Maranhão. Tem de se investigar nos arquivos históricos de lá, porque há sempre uma série de circunstâncias que os livros de história dos investigadores não têm. Tem de se contactar com a população e apanhar o léxico da zona, com todos os lindíssimos aspectos semânticos do Pernambuco ou Maranhão. Aborrece-me imenso ler um romance histórico e ver erros clamorosos por, justamente, não ter sido feita a investigação. Um dos últimos que vi está num romance passado em São Tomé, onde um escravo negro diz ao seu senhor que “ficou gelado” quando viu a sua ama a fazer determinada coisa. Ficou… “gelado”. Isto passa-se no século XVI em São Tomé! Ficar “gelado” é absolutamente impossível. O leitor nem se apercebe porque o gelo é uma realidade dos século XX e XXI e tem gelo em casa todos os dias e não acha desconforme, mas quem é crítico literário e também autor, vê que há ali algo de oco. Noutro romance que li há pouco, Vasco da Gama chega à Índia e o samorim de Calecute “oferece-lhe” uma cadeira para se sentar. Não havia cadeiras, na Índia do século XVI. Há tronos onde só o samorim se senta e as restantes pessoas sentam-se no chão, sentamse em escanos – pequenos banquinhos -, sentam-se em almofadas, mas não há cadeiras. Ninguém vai dar cadeiras a Vasco da Gama para se sentar… ele teria, obrigatoriamente, de falar de pé, em frente ao samorim. Isto acontece não por falta de qualidade dos romancistas, mas por preguiça mental, falta de tempo e de dinheiro para ir aos locais. O autor tem de ser como um investigador da universidade. A ausência de investigação é, muitas vezes, compensada pela retórica. Muitas vezes, os autores são professores e escrevem bem, mas isso não chega para fazer um bom romance.

No seu livro o Último Europeu: 2284, faz uma série de previsões futuristas. Também fez um trabalho de pesquisa, mas virado para o futuro. Onde se inspirou para prever materiais e novos modos de interacção interpessoal?
Tinha escrito um romance sobre o terramoto de 1755 [A Voz da Terra] e constatei que tudo o que havia em Lisboa, nesse ano, hoje não existe, a não ser a pedra e restantes elementos da natureza. Não existia plástico, nem as formas de comunicação actuais – estradas e caminho- de-ferro -, electricidade, telefonia, televisão, etc. Daqui a 250 anos, no meu livro, não há carros, as estradas são uma espécie de tapetes rolantes e as pessoas já não comunicam oralmente, mas mentalmente, usando um cérebro novo, que se chama hipercórtex. Desenho uma sociedade com base em ciência que não existe hoje e que torna o Homem feliz. Mas isto acontece apenas numa parte da Europa onde vive apenas uma minoria de 100 milhões. No resto, onde vivem 400 milhões, vive-se o caos.

É um cenário de utopia que vive, lado-a-lado, com a distopia. Pelo que vemos da actualidade, qual é o cenário futuro que lhe parece mais provável?
Nunca se conseguiu prever o futuro a longo prazo. No final da Idade Média, tudo o que foi previsto não sucedeu. Tudo o que Orwell previu não sucedeu, embora algumas das críticas a Estaline e ao sistema soviético já se verificassem. Todas as grandes utopias, a de Marx, a dos falanstérios [pequena unidade social abrangendo entre 1200 e 2000 pessoas] de Louis Blanc, as comunidades anarco-sindicalistas, nada disso existiu. Por outro lado, as previsões feitas por Malthus, no século XIX, de que o Homem progrediria tanto que, de um posto de vista geral, não haveria comida para todos, e haveria epidemias de fome e doença, também não se tem cumprido. No Biafra, na Eritreia e em mais alguns pontos do globo isso cumpriu-se, mas ele falava num cenário generalizado na Europa. Nem se cumpriram as profecias de Marx, de que o operariado tomaria o poder e que o comunismo seria eterno… de certa maneira, o operariado tomou o poder na Rússia, mas perdeu-o de seguida. Não consigo prever o futuro. Fazê-lo é um exercício puro de imaginação. Contudo, posso fazer votos para que a ciência domine a sociedade e que o Homem viva com conforto, saúde e qualidade de vida, mas não posso dizer que será assim. Provavelmente, será a distopia a tomar conta da realidade. No meu livro, exagerei a distopia, para realçar aquele cenário, onde mais de 200 clãs dominam territórios e a população vive para trabalhar e recebe comida e roupas em função do seu trabalho. É uma Europa catastrófica… 2016 vai ser um ano muito belo, quando comparado com 2284.

Recentemente, no Festival Literário de Fátima, afirmou que “pensar é a mais perigosa das vocações” e que para pensar “só há cais de partida, nunca cais de chegada”… Pensar custa e as pessoas evitam fazê-lo?
Sim, porque pensar traz inquietação. E as pessoas evitam pensar no futuro e sobre a vida. Mas devia- -se pensar nesta sociedade que está formatada. Hoje, não há coisas somem menos, uns mais bonitos, outros mais feios. Pensar é sair fora da estrada e desta informatização e formatação que a sociedade faz através da escola e da família: vestimos os mesmos casacos, temos os mesmos carros, vamos aos mesmos hospitais, escolas e cafés e jantamos e almoçamos à mesma hora. Não critico totalmente a informatização, o que critico é a formatação básica dos cérebros a todos os níveis. Por exemplo, os jornais nacionais dizem todos o mesmo, com uma ou outra excepção. Tanto faz comprar o Público, o DN ou o JN. Trazem as mesmas notícias… apenas há um ou outro artigo que pode valer o jornal. Por exemplo, o Público sublinha muito a ciência. Depois as televisões repetem as notícias que estavam nos jornais. Isto não satisfaz um cidadão do século XXI e percebo que a maior parte dos jovens deixem de ler jornais. Também faço um esforço para os comprar e, muitas vezes, folheio-os para perceber se vale a pena. É que aquilo que o jornal me está a dizer eu já ouvi às 7 horas na rádio, quando vou a caminho do trabalho.

E é perigoso pensar de outra maneira?
É. Ao pensar de outra maneira que não aquilo que a formatação da sociedade diz, pomo-nos à parte. Somos a formiga que não vai no carreiro, como dizia Zeca Afonso. Isso faz-nos sentir tristes porque estamos sozinhos, porque pensamos de uma maneira diferente da dos outros. Traz inquietação nocturna.

Os efeitos da interrupção do processo de modernização europeia de Portugal é a reflexão que sugere no livro Portugal: Um País Parado no meio do Caminho (2000- 2015). O que faz o País atrasar-se em relação aos parceiros europeus?
A seguir a 1640, quando Portugal se tornou novamente independente, os espanhóis tinham levado todo o dinheiro dos cofres, e em 1641, havia apenas 60 cavalos para defender todo o Alentejo. Mas, em 1690, foi descoberto ouro em Minas Gerais, no Brasil. O ouro começou a chegar àquela Corte pobre, que admira a Inglaterra e a França e despreza Espanha, devido à guerra pela independência. Em 1705, quando D. João V toma o poder, o conde da Ericeira tinha criado um conselho para desenvolver ao máximo as artes mecânicas em Portugal, ou seja a industrialização. Mas descobre-se o ouro e o rei D. João V diz uma coisa que marca a história de Portugal: “há povos para os quais Deus destinou as artes mecânicas e têm de trabalhar todos os dias, e há povos para os quais Deus destinou a evangelização”. O monarca acha que Deus – e cá está a questão das elites – destinou Portugal a evangelizar a Índia, o Brasil e a África, com o ouro brasileiro. É um dos reis mais supersticiosos de Portugal. O ouro não foi destinado ao engrandecimento da população, mas a grandes obras que exprimiam a religião cristã, como o convento de Mafra, a patriarcal, a Ópera do Tejo, destruída pelo terramoto, mas tudo sem uma política de enriquecimento da população. Até os famosos coches do Museu do Coche vinham de Paris. Não se dava trabalho e emprego aos portugueses. Os vidros vinham de Veneza, as loiças de Limoges, as sedas de Lyon. Vamos perdendo oportunidades, e mesmo no século XXI. A nossa elite é canina na obediência e macacóide face ao estrangeiro. Isso continua hoje nos partidos, tirando talvez o PCP, mas mesmo esse era canino e macacóide face à URSS. Não há um único pensamento português económico ou político explícito. Seguimos o que está na moda na Europa e América. Até agora, era o neoliberalismo e fomos todos neoliberais. Quando ele falhou e o BCE fez empréstimos a juros negativos para espevitar a economia, passámos a ser keynesianos e intervencionistas.

Como se resolve esta situação?
Como dizia António Guterres: com a educação. Pessoas mais instruídas não deviam permitir que esta situação continuasse…. Não deviam, mas permitiram com Passos Coelho. O Presidente da República que deveria ser a grande almofada para a humanização das medidas do Governo - era essa a sua grande tarefa -, defende um neoliberalismo mais profundo do que o do antigo primeiro-ministro. Um dia, com uma boa educação científica, espero que deixemos de ser sebastianistas.

“Sou professor, falo muito e, quando falo, o cérebro embala”
Miguel Real é o pseudónimo literário de Luís Martins. Nascido em 1953, este escritor, ensaísta e professor de filosofia adora explicar tudo ao mais ínfimo pormenor, dando exemplos que nos prendem a atenção e têm o condão de nos pôr a imaginar. “Sou professor, falo muito e, quando falo, parece que estou a dar uma aula. Isto cá no cérebro está programado e embala”, brinca. É autor de numerosas obras sobre Eduardo Lourenço ou António Vieira, é romancista e dramaturgo, tendo recebido o Prémio Revelação de Ficção da APE/IPLB, em 1979, com O Outro e o Mesmo. Em 2006, conquistou o Prémio Literário Fernando Namora com o romance A Voz da Terra. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Lisboa e é Mestre em Estudos Portugueses pela Universidade Aberta, com uma tese sobre Eduardo Lourenço. É actualmente colaborador do Jornal de Letras, Artes e Ideias onde faz crítica literária. Colaborou no programa de rádio Um Certo Olhar, da Antena 2, apresentado por Luís Caetano, com nomes como Maria João Seixas, Luísa Schmidt e Carla Hilário Quevedo.

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